A grande confusão das coisas simples

Resenha do livro "Balés", de Bruna Beber
Bruna Beber, autora de “Balés” Foto: Renato Parada
01/11/2009

No segundo livro de poesia de Bruna Beber, Balés, do palco da página saltam para nós, sua platéia, os poemas todos a bailar conosco nas mãos de um: Anéis. Como se nele(s) se forjasse a aliança, não somente entre cada um dos corpos do livro, mas destes com o noivo-leitor que busca entrever-lhe a grinalda, o buquê e o véu.

Ao insinuar a poética disto que ora chamamos de baile (d)e casamento, Anéis o ensaia muitas vezes às avessas, na medida em que seus versos afirmariam também pelo reverso as motivações desta poesia-noiva nada imaculada e sem vestido branco, “na grande confusão das coisas simples”. Constituído de cinco dísticos, o primeiro — “Quero alegria pro poema/ mas os versos saem em mi” — já diz desta voz predominantemente lírica, em cujos timbre e tom se quer alegre a vibração do sentimento, ainda que o paradoxo de viver (e escrever, e alegrar-se) o ironize com notas musicais díspares, porque precisa justamente delas, da ausência angustiosa do feliz, para o desejar e, nem que seja como possibilidade, o atingir. Desse modo, mesmo “em mi”, os poemas de Bruna Beber conseguem nos arrancar enviesado sorriso, até quando, com seus “dentes da frente” perdidos, “não podem mastigar os cacos/ de vidro da dor”. Esta nunca vem com o peso da “pedra da gávea” sobre o nosso peito, ou pelo menos o dissimula com a leveza áspera de um mínimo gesto de (tentar) “assobiar seu próprio uivo”. E é decerto esse diálogo evidente com a música (a popular brasileira, sobretudo) o que torna estes anéis também uma aliança com grandes canções de nossa cultura.

Talvez os cantares pelos quais a escrita de Beber se venha a encantar cumpram com a busca do segundo dístico — “Tento decorar as penas/ estão desbotadas” — no qual a música antiga (de um Lupicínio Rodrigues, por exemplo) possa valer como tinta nova para uma alma gasta, em cuja interface com a vida ouvimos, com a ambigüidade que lhe é característica, o dístico terceiro: “Todas as cores/ vejo em preto e branco”. Não que a poeta não perceba mais coloridos. Possível que veja, sim, cores no preto e branco, da mesma forma que dissemos ouvir alegria na nota em mi e sentir tinta nova na alma gasta. Nesta referência dupla ao musical e ao plástico, flagraríamos o apogeu da arte literária, uma vez ultrapassada a própria dimensão lingüística?

Assim, no quarto dístico, a voz lírica — com e sem alegria (e para nossa alegria) — se contradiz na coerência de sugerir a contradição de sua poesia: “Canto para esquecer/ a grande confusão das coisas simples”. É no canto desejoso de seu esquecimento, que o caótico se faz lembrado, ou melhor, (co)memorado neste livro. Memória da babel dos dias, a boca de Bruna Beber se abunda de um incêndio sem saliva capaz de apagá-lo. Por isso, fala pouco — diz-nos sua língua. Quase sem fala, seu poema é coisa simples, sem floreio, mas não simplória, sem florir. Confusão que não prescinde de palavreado confuso. Basta-lhe o difuso. E difundi-lo. No vocabulário ordinário, com “pneus para tratores” na “estrada desnivelada” do amor, a vida pode ser — e é — extraordinária. Isto, a arte: conseguir guardar “tanto carinho numa luva de boxe”.

À maneira do primoroso “poema para encorajar hélices”, a simplicidade dessa escrita chega a se comparar à da criança comprometida em transportar uma travessa de vidro até a mesa posta para o almoço — ofício que se revela, nos passos inseguros do infante, um caminhar vagaroso, cheio de responsabilidade. De complexidade, vale dizer, pois, junto à tarefa, nele se sugere pesar, “frágil, o mundo inteiro”.

No derradeiro dístico de Anéis, “Não sei de que material seco são feitas/ as perdas”, finalmente esta poética se ganha no desacerto do que (não) diz. Seus ganhos se fazem de um “material seco” — a economia verbal, o verso breve — que, umedecendo-nos de silêncio, não nos priva de sentir, em nossas ínfimas e infinitas peles e camadas, “muitas lágrimas de cebola”.

Que Bruna Beber não se faça uma das principais referências da novíssima geração, conforme sentencia a orelha do livro. Afinal, assim como a nova (que, diante dessas atribuições apressadas da lógica da ultrapassagem, assim parece ter-se tornado velha antes do justo reconhecimento), nestes moldes a poeta corre o risco de partir junto quando a tal “novíssima”, em minutos, também ficar para trás. Por ora, a poesia de Beber segue em referência com si mesma. E isso não é pouco. E que seja por muito tempo.

Balés
Bruna Beber
Língua Geral
51 págs.
Igor Fagundes

É poeta e crítico literário.

Rascunho