🔓 A força da memória

Em "Humanos exemplares", Juliana Leite tece uma narrativa em que a metafísica temporal se coloca em desordem
Juliana Leite, autora de “Humanos exemplares”
01/04/2023

À primeira vista, Humanos exemplares é uma ficção em que há mais passado do que futuro. Na trama de Juliana Leite, a centenária Natália passa os dias no marasmo de seu apartamento, isolada devido a uma ameaça externa — o que nos remete à recente pandemia. O presente, para a personagem, é ínfimo. Ela é captada pela lembrança dos seus queridos, pessoas que já morreram, mas cujos afetos continuam a rondar a rotina por meio da lembrança. Natália reflete: “Nesse ponto da existência o passado é o único futuro, o único lugar onde alguns encontros ainda acontecem”.

Nesse sentido, a memória é o grande tour de force do romance. Ela atua como um redemoinho, atraindo Natália para o seu centro, no qual há a possibilidade de contato com o passado perdido. A memória alcança um caráter dúbio dentro dessa ficção. Temos traços de Eulálio — o também centenário —, protagonista do Leite derramado (2009) de Chico Buarque, para quem a memória “é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas. Não pode é alguém de fora se intrometer, […] como a filha que pretende dispor minha memória na ordem dela, cronológica, alfabética, por assunto”.

Bem colocada é a sentença de William Faulkner, presente na orelha de Humanos exemplares, “a afirmação redonda e idiota do relógio”. Assim como o escritor norte-americano, Juliana Leite tece uma narrativa em que a metafísica temporal se coloca em desordem, em que os tempos se ultrapassam e interpenetram. A idade de Natália, o correr dos anos e o isolamento presente a fazem viver em uma temporalidade fora da cronologia do tempo físico. Assim como Quentin Compson, figura trágica de Faulkner em seu O som e a fúria (1929), Natália tenta escapar do mausoléu do relógio, mas, “o tique-taque não parou”.

Tom memorialista
Essa temporalidade, centrada no passado, determina também o tom memorialista do romance. Com este, temos uma interessante técnica: a ocasional coincidência entre primeira e terceira pessoa. Essa focalização atua na cisão da voz narrativa. Entre o tempo vivido e o tempo narrado, há espaço suficiente para ser duas, nos mostra a forma do romance de Juliana Leite.

O poder das lembranças está em primeiro plano na narrativa. Em grande parte de Humanos exemplares, Natália não é nomeada. Ela é a velha, a professora, a mãe. Afinal, o nome é para ser usado pelos outros — só há serventia quando temos alguém para chamá-lo — e os queridos de Natália já estão mortos. A única exceção é a filha, cujas ligações diárias são o único alento da protagonista, o grande acontecimento da rotina pacata da velhice. Mas, para ela, Natália é a mãe.

Os queridos de Natália, como ela os chama, continuam a ser o seu conforto, ainda que não mais existam concretamente. Entre eles estão o marido, Vicente, que dava aulas na mesma escola que ela e foi arrebatado por seu macarrão. Embora não existisse em ambos o pensamento de se casar, logo eles percebem que entre os encontros furtivos e o casamento havia uma linha tênue. O amor é explicado na narração:

Se apaixonaram um pelo outro justamente por isso, afinal estranhar as mesmas coisas era uma afinidade importante, uma oportunidade maior até mesmo do que gostar das mesmas coisas.

A união de Natália e Vicente dura até a morte do marido, nos braços da protagonista. Entre o idealismo comum e a rotina parada de dois aposentados, o romance mostra uma relação conjugal feliz, mas não utópica. Em certo momento do casamento, o silêncio, os desencontros e os segredos rodam o casal, de modo que Humanos exemplares aborda as ocasionais disjunções do arranjo familiar, quando tanto Vicente quanto Natália vão procurar satisfazer os seus desejos com outros pares.

Na juventude de professora, ela também encontra conforto nos “queridos”, o grupo de outros docentes que busca enfrentar o turbulento momento histórico brasileiro: os Anos de Chumbo. As reuniões são permeadas de afeto e proximidade. Ela recorda:

Seriam companheiros fiéis entre si e companheiros fiéis da juventude enquanto tivessem vida e pele, não abandonariam aquele posto nem mesmo se a escola explodisse ou desabasse — era assim mesmo que se sentiam, uma velha de apartamento pode afirmar.

Aproximações
Neste arranjo, eles também conhecem Jorge, misterioso morador de rua que vê o destino nas cartas. Sarah, a amiga mais próxima de Natália, torna-se dona de uma loja de biscoitos, após ser impedida de vender os seus quitutes na escola. Ela funciona como um apêndice do ambiente familiar. Por último, resta a filha, que mora em outro país e telefona diariamente para a mãe. Natália se lembra do relacionamento da filha e de sua companheira de quase quarenta anos, iniciado ainda na adolescência.

As recordações da protagonista a transportam até os Anos de Chumbo, período mais recrudescido da Ditadura Civil-Militar (1964-1985). A repressão se instala lentamente, invadindo o microcosmo da escola. O famoso macarrão feito pela professora, que servia para aproximá-la dos alunos, é visto com suspeitas pelos policiais. As suas aulas de redação são limitadas, tornando-se apenas um exercício de caligrafia. Vicente, professor de geografia, sofre duramente com a censura. Por fim, ele tem que passar seis meses escondido no porão de um amigo em Petrópolis. A experiência opressiva marca a vida do casal, que pensa constantemente em fugas e modos de desaparecer.

Humanos exemplares adiciona novos tons à literatura que se concentra na vivência da velhice. A narrativa memorialista de Natália a aproxima de nomes como o Eulálio de Chico Buarque e o Bento Santiago de Machado de Assis. Ainda assim, há algo novo, concentrado na ternura de uma vida plena. Natália resiste a um sistema de aniquilação dos afetos, cada vez mais infestado socialmente, o que lembra, por exemplo, a luta social de Janina Dusheiko, a protagonista de Sobre os ossos dos mortos, da Nobel Olga Tokarczuk.

Quando se tem um século de vida, a morte é algo a se esperar. Para Natália, essa espera é amena. Humanos exemplares, embora com uma protagonista idosa e ambientado entre momentos tensos (a ditadura militar e ecos da pandemia de covid-19), não é uma ficção sobre a morte. Assim como A morte de Ivan Ilítch, do russo Tolstói, nos diz muito sobre a vida de seu personagem, o romance de Juliana Leite nos oferece lapsos da vivência de Natália. Como podemos notar, os fragmentos dessa vida são repletos de plenitude.

Humanos exemplares deixa ao leitor uma profunda reflexão sobre a dor de quem fica. Mais do que isso, há um questionamento: quem vai lembrar daqueles que permanecem? Nesse sentido, o romance de Juliana Leite é uma ode à lembrança, na qual se conectam o passado, o presente e também o futuro.

Em um primeiro momento, parece não haver futuro possível no romance. Mas logo somos introduzidos aos mapas de Vicente, resultados de uma atividade na qual ele propõe aos alunos traçar um mundo ideal. Nisso reside o futuro; não individual, mas coletivo, com a transformação em uma nova humanidade. Humanos exemplares, como toda dose de boa literatura, nos lembra das infinitas possibilidades.

Humanos exemplares
Juliana Leite
Companhia das Letras
248 págs.
Juliana Leite
Nasceu em Petrópolis (RJ), em 1983. Seu primeiro romance, Entre as mãos (2018), recebeu os prêmios Sesc e APCA e foi finalista dos prêmios Jabuti, São Paulo e Rio de Literatura.
Giovana Proença

É pesquisadora na área de Teoria Literária da USP.

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