A epifania do olhar

Em "Acrobata", Alice Sant’Anna busca, numa poética do microscópico, a fotografia de cenas do cotidiano
Alice Sant’Anna, autora de “Acrobata” Foto: Renato Parada
01/07/2025

Em Acrobata, o olhar e a palavra de Alice Sant’Anna se concentram na fotografia de cenas do cotidiano. Na orelha do livro, Milton Hatoum percebe, de forma aguda, os elementos do mecanismo de sua poética, ressaltando a oralidade, o fator surpresa, o estranhamento, a mescla do prosaico e da poesia, a maternidade e o lirismo que irrompe da realidade. Além de toda essa riqueza revelada por Hatoum, acrescentamos uma poética do microscópico, observada pelo olhar do eu lírico a respeito do real e do cotidiano pela via da epifania poética.

A epígrafe de Julio Ramón Ribeyro é muito pertinente ao contexto do livro: “Quando poderei anotar neste diário: encontrei, afinal, o que tanto procurava?”. Alice é uma aguda observadora de cenas do cotidiano como uma fotógrafa a dar o clique em acontecimentos que nos impactam profundamente.

No poema sabiá, entre a indiferença de uma mãe com relação ao que se encontra lá fora, uma mãe com seu ninho de filhotes que piam alto na árvore e a importância sobre sua própria vida com seu filho dentro de casa, o eu lírico começa a ter compaixão com tudo o que pulsa na natureza circundante. É a epifania vibrante de tudo o que é vida. Vejamos: “ela é mãe como eu/ e decidiu fazer seu ninho na árvore ao lado/ do quarto do meu filho/ num primeiro momento aquilo não me diz respeito“. Começa a perceber a semelhança do nascimento, da beleza no entorno, onde brota a vida naquele pássaro e em outras coisas naturais à sua volta.

A poeta quer encontrar o húmus da existência em experiências epifânicas que revelam o universo telúrico e fértil da natureza, pois o pulsar da existência está aqui e não em nossa realidade tão caótica. E Alice escreve para abandonar esse caos que nos rodeia, mas, em certos momentos, a ele se refere como forma de protesto e indignação e aqui revela seu lado político. Para driblar a atmosfera da crueldade que envolve a humanidade, a autora encontra refúgio nas experiências de admiração e êxtase diante da vida.

Na busca do paralelismo entre o humano e o animal, assim como em outras formas vivas, um espelho invertido quebra tal simbiose, quando se indaga: a sabiá teria esta preocupação? Leiamos o final inusitado: “a sabiá ao me ver/ com um bebê de cinco meses nos braços/ não sente nada/ não tem curiosidade ou compaixão/ não me olha e pensa/ ela é mãe como eu”. O que nos diferencia é nossa ratio. E essa mesma razão é que está nos destruindo pela ganância desmedida dos ditos poderosos.

Particular epifania
Já em dia de circo, fala sobre a comunicação pelo olhar. É pelos olhos que se mostra sua particular epifania: “o olho é uma câmera ou uma antena”. E aqui, o eu lírico tece pelos olhos a descrição de vários personagens que atuam no circo. O olhar dá visibilidade às coisas, aos contornos, às formas, enquanto ela quer permanecer invisível ali. Ela deseja ver, mas não quer ser observada, porque a experiência é dela, portanto esse insight é uma vivência pessoal. Mas isso não quer dizer que não haja o diálogo. Num tom de conversação entre ela e outros personagens, percebem-se diálogos indiretos, até ao se referir a frases de outros escritores, citados indiretamente ao longo do livro (T. S. Eliot, Paul Auster, como exemplos), o que dá maior flexibilidade à sua escrita. E permanecer despercebida a faz olhar melhor. E, por isso, inveja o acrobata com seus movimentos, mas não conhece a vida que ele leva.

Em meu avô, o eu lírico o utiliza como leitmotiv para discursar, num tom de compadecimento, sobre a realidade que o circunda. O avô doente, fisicamente, não seria o retrato do adoecimento de uma sociedade, pois é essa sociedade a causa de nossas doenças. Este terror em que se vive seria uma antiepifania. O retrato do caos não é de uma experiência reveladora que nos ilumine. Necessitamos do insight que nos dê um alento infinito num momento preciso e poético, algo que Alice Sant’Anna conhece profundamente.

É pela fotografia que ela tece os momentos mais epifânicos em sua poesia, como se vê no poema duas mulheres — sobre foto de mauro restiffe. Uma fotografia grande com duas mulheres de costas para a câmera e a presença também de três crianças. Ela reflete sobre várias possibilidades de como viveriam aquelas mulheres e crianças. O retrato é repaginado pela linguagem poética fundindo foto e poesia numa espécie de fotopoema. Por outro lado, a voz que narra e descreve seus apontamentos não se dá por inteiro, já que uma voz aponta para uma verdade absoluta sobre o que vê, no entanto, titubeia, duvida, quando utiliza, em vários trechos, as palavras “talvez”, “apesar”, entre outras. No último verso, com o uso da expressão “quase certeza”, revela toda ambiguidade da poeta, pois a luz estava desligada, no momento em que visualiza a foto no seu pensamento. Há várias contradições nessa voz que também diz que é um chute afirmar que as duas mulheres nesta fotografia estavam no “sul de minas” e que nos orienta a seguir isso. Dessa forma, Alice Sant’Anna cria sua própria história, que é movente, pelas várias versões que desenvolve no momento epifânico da foto de Mauro Restiffe.

Nos versos finais, lê-se:

não fica noite
os filhos não crescem
não passa carnaval nem réveillon
não surgem rugas nem fios brancos
as semanas se estendem e com elas
anos e décadas
as mulheres não trocam uma palavra
desaprenderam a língua materna
o bebê segue no colo sem emitir um som
as duas crianças não aprendem coisa nenhuma
não estou de frente nesse momento
mas posso dizer
estou envelhecendo
tenho quase certeza

Nesse trecho, o eu lírico quer nos revelar a estaticidade da fotografia, que se dá no momento epifânico do clique, a dimensão de sua importância se revela na presença do momento registrado para gerações futuras no âmbito do conhecimento histórico e do instante, marcado também para familiares e amigos guardarem como acervo da memória. E aqui, o sujeito lírico observa e nos apresenta as suas revelações epifânicas com relação ao que vê pela lembrança num processo fotográfico. Com toda sua mestria, nos mostra seus ângulos inventivos em torno de uma foto. Alice nos relata a real dimensão de personagens humanas, seres de nossa realidade cotidiana, os vivos e os mortos. E também fala dos seres anônimos e esquecidos da sociedade.

Maternidade e morte
A experiência da maternidade é enaltecida em vários momentos do livro como geradora da vida, é uma experiência significativa e não banal. Mas a experiência da morte também se presentifica no poema shackleton, em que um explorador polar arrisca a vida em suas viagens. E, no final do poema, dá-se a triste constatação da crueldade desumana, pois os habitantes de uma pequena cidade da Ucrânia morrem devido a uma usina nuclear.

Todas as partes brutais e cruéis como essas no livro são consideradas antiepifânicas, não traduzem nada, senão a escuridão total de toda beleza, de toda vida. É a imagem da destruição total de toda humanitas.

E a experiência epifânica da gravidez, em Acrobata, nos fala do amor universal que temos de cuidar. O nascimento de um novo ser é uma pérola diante de um mundo tão caótico, uma verdadeira joia frente a uma realidade de tribulações, o caos como descrito no poema svetlana, escritora vencedora do prêmio Nobel de Literatura, que nos relatou o sofrimento de quem viveu de perto a tragédia nuclear de Tchernóbil. E aqui se fala das crianças com deformidades, da gravidez e de seus riscos, algo que nos indigna profundamente. O poético tem que dar voz aos desafortunados da vida.

No final do livro, o eu lírico se refere ao avô novamente, trabalha a questão do medo e como é importante ter medo para que não aconteça nada grave. Vejamos trechos do poema de volta à praça:

a um filho se deve ensinar
a ter os medos certos
a não derrapar na borda da piscina
a não sumir de vista
a não se debruçar na janela
a não perder o fio da meada
a um filho se deve ensinar
que o medo em alguns casos pode ser
chamado de cautela
que o medo em alguns casos
pode inspirar coragem
e quase nada
é mais bonito que coragem

À guisa de conclusão, Acrobata revela a faceta mais bela e microscópica da epifania encontrada nas cenas diárias daquilo que se traduz como potência imagética e da natureza ao redor. Para finalizar, citemos um trecho de Maurice Blanchot sobre a arte poética que nos remete à imagem do mistério proporcionada pela experiência epifânica: “A poesia é a potência sobre a qual a noite se abre”.

Acrobata
Alice Sant’Anna
Companhia das Letras
88 págs.
Alice Sant’Anna
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1988. É poeta e editora, autora de Dobradura (2008, 7Letras), Rabo de baleia (2013, Cosac Naify, prêmio APCA de poesia) e Pé do ouvido (2016, Companhia das Letras). Tem livros publicados nos Estados Unidos e no Chile. Em Portugal, os volumes foram reunidos em Aula de natação (2018, Imprensa Nacional Casa da Moeda).
Alexandra Vieira de Almeida

É professora da rede estadual do Rio de Janeiro. Foi tutora a distância durante oito anos da faculdade de Letras do Consórcio Cederj – UFF. É doutora em Literatura Comparada pela UERJ e atualmente está fazendo dois pós-docs. Tem oito livros de poemas publicados, sendo o mais recente, A mecânica da palavra, 2022 (Penalux).

 

 

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