A captura de um mundo em transformação

Obra de Evelyn Waugh esboçou sofisticada crítica de costumes à geração que viveu na primeira metade do século 20
Ilustração: Evelyn Waugh por Osvalter
01/12/2014

Ao final da primeira temporada de Downtown Abbey, o patriarca da família, em meio a uma festa, anuncia, com pesar e seriedade: “Nós estamos em guerra contra a Alemanha”. O evento em si, cujo início completou cem anos em junho passado, é considerado por historiadores e pensadores como o marco inicial do século 20, conforme teoriza Eric Hobsbawm, ou o black swan dos black swans, como analisa Nicolas Taleb. Sem querer entrar nessa ou naquela tese, é fato que a Primeira Guerra Mundial representa o fim de um mundo tal como era representado — pelos escritores, pelos pensadores e pelos artistas. As coisas seriam diferentes dali em diante, mas é certo apontar que naquele exato momento — e, verdade seja dita, mesmo durante muitos anos depois —, poucos perceberam que aquela redoma de vidro havia quebrado. No lugar de reconhecer de vez aquela rachadura, as mesmas pessoas que tentavam a todo custo restaurar aquela ordem pré-junho de 2014, não eram capazes de perceber que a velha ordem natural havia sido alterada de modo permanente.

Todo esse preâmbulo para apresentar o curioso caso do escritor inglês Evelyn Waugh, que soube esboçar em sua obra uma sofisticada crítica de costumes à geração que viveu na primeira metade do século 20, período em que os ingleses ainda determinavam a ordem das coisas — e, infelizmente para eles, não souberam resolver o dilema que se apresentou a sua frente. Como uma espécie de cronista da alta sociedade, Waugh foi ao mesmo tempo personagem e testemunha ocular das histórias daqueles que tinham de manter seu status acima de qualquer coisa, numa época em que trabalhar para ganhar a vida ainda era visto com alguma desconfiança — nesse caso, o mais relevante era ostentar um estilo de vida de tal forma acima dos padrões que a expressão mais próxima de sintetizar esse estado de coisas talvez fosse o espanto desolado de F. S. Fitzgerald: “Os muito ricos são muito diferentes de você e eu”. De sua parte, Evelyn Waugh pode ser entendido como um autor que se confundiu com as histórias que criou em sua ficção, exatamente porque ele mesmo foi alguém que esteve em busca do santo graal quando jovem, a ascensão social — no limite, Waugh mostra o quanto essa ansiedade por reputação e status pode render histórias divertidas e igualmente cruéis caso os protagonistas não estejam preparados para elas.

Nascido em 1903, Evelyn Waugh publicou seu primeiro livro antes dos 30 anos. As características que o destacariam como prosador já estavam presentes: o cultivo pelo sarcasmo; a ampla galeria de personagens pitorescos; a leveza e a sofisticação no estilo; assim como a capacidade de provocar riso nos leitores, que desde sempre estiveram cativados pelo seu texto solto, como se fosse alguém à vontade para frequentar os salões do grande monde e, ainda na mesma festa, ser capaz de entender como o andar de baixo se comportava. Uma nota importante: Evelyn Waugh não era um escritor militante, desses que defendem uma causa política ou uma agenda em favor dos desassistidos. Sua causa, se é que ela existiu, é por esse mundo repleto de tradições, costumes e alta sofisticação. 

Narrativa satírica
Como observador perspicaz de seu tempo, Waugh esteve atento o suficiente para conceber uma narrativa satírica dos anos 1920. E o resultado está em Decline and fall, o primeiro livro do autor. Na obra, o escritor inglês adota a ironia como recurso para denunciar que a ordem das coisas estava em processo de decomposição — e, por isso, restavam o riso e o ridículo para Paul Pennyfeather, o protagonista que é expulso da instituição de ensino que frequenta após se portar de maneira inadequada. Como se vê sem dinheiro, logo é obrigado a trabalhar numa escola sem muita tradição para dar conta de suas despesas. Algum tempo depois, ele se apaixona pela mãe de um dos seus alunos — e é a partir daqui que a queda se aproxima, de um jeito que efetivamente coloca em risco toda a condição de status que a alta sociedade costuma prezar. De te fabula rerum. Evelyn Waugh escreve aqui do universo que lhe era bastante familiar, pois em seus anos de formação era essa a experiência mais forte pela qual sua personalidade havia atravessado. Como registra o biógrafo David Lebedoff no instigante ensaio O mesmo homem, publicado no Brasil em 2010, Waugh era o que hoje seria conhecido como valentão, daqueles que promovem bullying nos alunos mais frágeis. Isso se manifestava na capacidade de o futuro escritor espezinhar os colegas com apelidos, além de se aproximar dos mais brutos para perseguir os mais frágeis. Quando ingressou em Oxford, alguns anos depois, sua trajetória de fanfarrão prosseguiu, só que, desta feita, houve quem o enfrentasse: C. M. Crutwell, o diretor da faculdade, desqualificou o escritor em formação como “suburbanozinho com complexo de inferioridade”. Sim, Evelyn Waugh também conhecia profundamente o quão era grave não pertencer ao seleto clube que não aceita novos membros.

Se Decline and fall mostra em tom satírico a dificuldade que é ter seu status reconhecido numa sociedade que dá relevo para isso, outro grande sucesso do autor, Scoop, ressalta os muitos vícios e as poucas virtudes do jornalismo. Aqui, um registro merece ser feito: antes de a crítica jornalística ser uma prática corrente na academia ou mesmo nos próprios jornais, cabia à ficção (e aos escritores, evidentemente) abordar os problemas da imprensa. Balzac, Proust, Tolstoi, para ficarmos em autores notadamente consagrados, registraram com perspicácia a superficialidade inerente ao jornalismo e dos jornalistas. De forma efetivamente mais mundana — portanto, sem grandes perorações — e direta, Evelyn Waugh traz em Scoop uma radiografia cruel e engraçada a respeito do trabalho dos jornalistas. A trama: o importante jornal londrino The Beast envia para um conflito num obscuro país africano um correspondente que acredita que seu trabalho se pauta pela busca da verdade. O primeiro detalhe dessa comédia de erros em série: o jornal, no afã de cobrir o evento e agradar as figuras influentes que giram em torno do veículo, envia o repórter errado para o lugar. O resultado é hilariante e bastante ilustrativo sobre o funcionamento do jornalismo aqui, lá e em qualquer lugar — e em qualquer época. Exemplo disso pode ser visto no trecho a seguir, quando um jornalista mais experiente e igualmente desiludido define o trabalho da imprensa:

Olha, você tem muito que aprender sobre jornalismo. Veja o assunto de outra forma. Notícia é o que quer ler um sujeito que não se interessa por coisa nenhuma. E só é notícia antes de ele ler. Depois morreu, não é mais. Somos pagos para dar notícias. Se um colega mandar sua matéria antes, a nossa deixa de ser notícia. Há naturalmente o lado exótico que a matéria pode captar. Escrever sobre o exótico é como acertar na mosca um alvo que não existe. É fácil de escrever e de ler, mas como o telégrafo custa bom dinheiro, não podemos exagerar. Entende?

Para além da questão relacionada ao trato da imprensa, sem dúvida alguma o objeto central do livro, existem outros elementos que o romance permite trazer à baila, como é o caso do imperialismo inglês, um tema delicado e que para a audiência contemporânea pode não parecer tão evidente (a não ser, claro, que esse mesmo leitor tenha lido algo de Edward Said — Orientalismo, por exemplo, num desses cursos de humanas). Os jornalistas e os veículos de imprensa tendem a perceber o outro levando em consideração apenas seus próprios interesses, sem realmente se importar. Novamente, a obra pode ser lida como uma peça que registra o irrefreável clima de mudança na ordem estabelecida. O romance funciona, enfim, como um registro de uma época que, para o bem ou para o mal, não voltará jamais.

Conversão
“A sátira de Evelyn Waugh em seus primeiros livros derivava de sua ignorância a respeito das coisas da vida. Nesse sentido, ele acreditava que as coisas cruéis poderiam ser percebidas como engraçadas porque ele não as compreendia, e, portanto, era possível para ele comunicar esse aspecto cômico”. É o que escreve Cyrill Connolly no livro Enemies of promisse, a propósito dos autores da primeira metade do século 20. Evelyn Waugh, portanto, e a despeito de seu sucesso junto ao público, era percebido como um provocador pueril, alguém que não entendia o que efetivamente acontecia — daí a gratuidade de seu humor (se alguém tiver associado isso aos humoristas de stand up que pipocam na TV hoje em dia, o paralelo é permitido). Ao contrário de P. G. Wodehouse, que igualmente utilizava a chave do humor para retratar determinadas situações, Waugh era um sátiro mais violento, se assim é possível estabelecer, talvez exatamente por isso causasse tanta sensação e atraía a atenção dos leitores pela forma com a qual tratava os temas.

Se, na primeira fase, Waugh continuava a ser o mesmo provocador da infância, desta vez com uma voz literária já pronta, uma reviravolta estava por acontecer. E o ponto alto dessa mudança se dá com Brideshead revisited, aclamado como o principal livro do autor, o romance pelo qual ele é lembrado até mesmo por aqueles que não o leram. Mais uma vez essa mudança substancial estava articulada à própria mudança no caráter que, em 1930, se converteu ao catolicismo, numa espécie de consequência de sua primeira separação. Tendo buscado no primeiro casamento (de um total de três, de acordo com seu biógrafo, David Lebedoff) apenas a conveniência de pertencer a uma família de alta reputação junto à sociedade de seu tempo, ele logo veria que existe algo mais substancial do que as conveniências e a aparência. O discurso pode parecer extremamente moralista e, palavra proibida no momento, conservador, mas é inegável que o próprio autor encontrou no catolicismo a resposta às suas súplicas por status que não eram atendidas. Como escrevem outros analistas de sua obra, o caso para a conversão do autor foi acima de tudo intelectual, por finalmente perceber que, sim, o mundo carecia de sentido e de ordem, não importando o quanto ele buscasse alternativas em outros subterfúgios.

Ao livro: o prólogo do romance traz o reencontro do capitão Charles Ryder com a mansão dos Brideshead, que foi o lugar, décadas antes, de momentos decisivos na sua trajetória de vida. Nesse reencontro, o capitão Ryder resgata como foi que aquela família entrou, pouco a pouco, em colapso — e se um autor não é nada sem as suas obsessões, como escreveu Nelson Rodrigues, Waugh mais uma vez atenta sua arguta percepção para o momento em que, por várias razões, o Império Britânico, que outrora havia liderado o mundo, estar em franco estágio de desintegração — a narrativa do livro permite esse paralelo. Em uma célebre entrevista à Paris Review em 1962, o escritor revelou que Brideshead revisited é nada menos que um livro fruto de seu tempo. Caso fosse escrito em outro momento, quando as condições de vida não eram tão sofríveis, talvez seu resultado literário tivesse sido totalmente diferente, observa.

Em certa medida, a trilogia Sword of honor, que traz o relato sobre a guerra, é outro exemplo desse entendimento de que algo mais grave está acontecendo e, portanto, de que não há mais tempo ou ocasião para o tratamento das coisas de modo frívolo e pueril. Para certo público, o livro foi notado como uma celebração das forças armadas, algo que decididamente poderia colocar o autor que já havia sido considerado como crítico dos costumes como um reacionário de quatro costados. Embora seja um relato ficcional a respeito da Segunda Guerra Mundial, um momento chave para os europeus em geral e particularmente para os ingleses, Waugh dá continuidade ali ao processo de conversão intelectual pelo qual havia começado a trilhar anos antes. Essa condição não deve ser apontada aqui como justificativa para um eventual proselitismo religioso por parte do autor, mas, de certa maneira, é como se a ficha tivesse caído, enfim, a respeito da compreensão dos problemas ao seu redor. Mais uma vez, é impossível descolar a obra do autor da sua história pessoal, ou biografia: aquele Evelyn Waugh que cresceu no início do “longo século 20” só amadureceu, enfim, anos depois, após ter enfrentado dilemas pessoais e ter visto a face do horror de perto. Ninguém sobrevive a isso tranquilamente, muito menos um escritor sensível como Evelyn Waugh.

Papel no mundo
Ao que parece, foi nessa transição que o escritor soube reconhecer o seu papel no mundo e, a partir daí, reestabelecer uma ordem que desde os seus primeiros anos havia se perdido. Vale a pena aqui salientar a análise de David Lebedoff em O mesmo homem. Nesse livro, Evelyn Waugh e George Orwell têm suas vidas e trajetórias intelectuais reconstituídas e narradas em paralelo. Aprendemos, assim, que enquanto Orwell se esmerava para viver entre os miseráveis tentando resolver os dilemas que surgiram durante seus anos de formação em Eton, Evelyn Waugh sempre buscou a veleidade dos grandes salões, tentando suprir a falta desse status nesses primeiros anos. Ao se impor pela agressividade, tornou-se um tipo modelar dos narradores de seus primeiros livros, que a tudo e a todos satirizava, sem se preocupar com o que o coração do problema — ou na condição humana. Já Orwell, desde cedo, parece ter desenvolvido uma espécie de consciência social que identificava o problema da opressão seja em Paris, seja em Londres, seja na Catalunha. Esse sempre foi o grande alvo. Já Waugh, embora tenha escrito sobre a questão de status e das consequências dessa busca, talvez jamais tenha conseguido elaborar apenas um só ethos para sua obra, o que nem de longe é problema, mas uma constatação de como ele se transformou ao longo do tempo.

Para além desse signo de mudança, o que chama bastante a atenção na trajetória de Evelyn Waugh é a sua relação orgânica com a escrita. Na contramão do perfil médio dos escritores e artistas, que, introvertidos, buscam reproduzir em seus livros sua inadequação para com o mundo, Waugh expôs que era o mundo que estava fora dos eixos, cabendo, exatamente por isso, aos seus personagens tentar reestabelecer o sentido, ou uma espécie de ordem. Em sua primeira dentição como autor, isso ficava claro no modo como os seus personagens estabeleciam o status como meta a ser alcançada; já num segundo momento, o autor salientava que havia algo efetivamente mais relevante do que isso. Não por outro motivo, já no final da vida, era marcado por aquela palavra-chave que serve para desqualificar os dissidentes da ordem vigente. Na já citada entrevista à Paris Review, o entrevistador questiona: “O senhor acha justo descrevê-lo como reacionário?”. Sem pestanejar, Waugh dispara: “Um artista deve ser reacionário. Ele tem de se impor contra o conteúdo de sua época e não sair por aí aderindo ao sabor dos ventos; é preciso oferecer algum tipo de oposição”. Enquanto isso, no mundo contemporâneo, alguém que imaginar discordar tem praticamente que pedir desculpas por ousar pensar diferente.

Por que motivo, então, um artista que foi corajoso, teve voz original e tocou em questões emblemáticas de seu tempo hoje merece nota de rodapé entre os literatos de nossa época? As possíveis respostas são muitas, nenhuma delas totalmente satisfatória. Ainda assim, é preciso tentar compreender esse fenômeno: Evelyn Waugh é um autor da primeira metade do século 20, época em que a ordem das coisas, naturalmente, não tinha sido transformada. A expressão mais adequada a um conservadorismo escancarado era: natural. Os livros de Waugh, tanto os mais satíricos como os mais graves, denunciam, para o bem e para o mal, as consequências dessas mudanças. E um dos nós repousa aqui: de Evelyn Waugh para cá, as transformações ocorreram com tal velocidade que, para os leitores de hoje, o conteúdo das histórias expostas por Waugh parecem não ter real importância. Em outras palavras, embora pertença a um contexto importante para a história recente, a ficção de Waugh perdeu o elo com os leitores de hoje. Em paralelo a isso, é fundamental mencionar que os textos do escritor inglês primam por uma sagacidade que pode ser considerada elitista para a categoria jovens-adultos, uma fatia importante do mercado editorial. Nesse exato momento da história das ideias, esses jovens-adultos dividem com os adolescentes a preferência por determinados títulos — que, até meados do século passado, seriam consumidos apenas por esses últimos. Pelo conteúdo e pela forma, os romances de Waugh se endereçam a um público já com alguma maturidade — ou que ao menos almejam esse tipo de desenvolvimento. Mesmo fora do Brasil, não são poucos os relatos de leitores que se desinteressam por textos com essa característica, a não ser que o objetivo seja assumidamente a realização de um exame ou prova de admissão — nesse caso, o livro pode constar de alguma lista obrigatória. Mesmo em se tratando de um dos principais autores de sua geração, sua ficção não é tão mencionada pelos homens de letras, em contraste com nomes como Orwell e Huxley, por exemplo, que sempre são citados como referências para compreender o turbulento século 20.

Muitos anos depois, Evelyn Waugh ainda tem algo a nos dizer. Escritor que sobreviveu a transformações definitivas e que assistiu a humanidade tentar se autodestruir, é interessante considerar o seguinte: trata-se de um escritor que pode nos ensinar algo a respeito de como é possível superar perdas, desastres e o temor de recomeçar de novo.

Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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