O nada dos dias

Em "Eu, cowboy", Caco Ishak trata com sarcasmo o nonsense da vida
Caco Ishak, autor de “Eu, cowboy”
07/12/2015

Nesses tempos conturbados de certezas empedernidas e maniqueísmos políticos (cujo apogeu se materializa em contendas ideológicas entre esquerda e direita, cada qual mais convicta de sua prerrogativa sobre a mente e o espírito dos homens), o niilismo parece ser, mais que um caminho razoável ao ser reflexivo, uma zona de conforto ao escritor. É sintomático que grande parte das narrativas atuais tenha como pedra angular essa espécie de angústia, a enxergar no mundo ao redor, e em especial nestas paragens, um imenso oceano de infertilidade. Herança, talvez, da contracultura do século passado, da literatura do pós-guerra, além da desolação espiritual de um Céline, em sua Viagem ao fim da noite.

O niilismo é a pedra de toque entre tantos autores contemporâneos, mas no tom de suas obras observa-se um índice importante de variação do tema. Importante porque tais variações formais põem a nu a relação do autor com tal problemática, dando a diretriz essencial da narrativa.

Em algumas narrativas, como Antes de evanescer, do paulistano Escobar Franelas, a melancolia envolve todos os elementos presentes; já em Eu, cowboy, de Caco Ishak, o sarcasmo anárquico predomina, resultante de uma visão de mundo desolada e sem articulação racional entre os sucessos da vida, ou sequer uma relação razoável de causa e consequência a dar sentido a tais sucessos, sugerindo que não há sentido algum a ser encontrado (ou dado).

A arte imitando a vida
Falar da obra nos moldes genéricos do romance (por mais pós-moderno que se os conceba) é, salvo equívoco do resenhista, não fazer justiça a ela. Eu, cowboy está mais próximo de um alucinado poema em prosa beatnik, cujos vinte e sete capítulos, alinhavados por uma tenuíssima linha narrativa, devem ser considerados em conjunto: seu fragmentarismo mimetiza assim a consciência do egoico e “autoboicotador” protagonista/narrador Carlo Kaddish.

Em suas próprias palavras, eis um perfil de sua personalidade (e, a um só tempo, o foco temático da obra e o tom com que o autor a desenvolve):

Um único assunto me interessava: eu. Uma única subpasta: meus problemas. Pensamento positivo? Medo de virar a cara, abrir os olhos e enxergar o inimigo ao lado. No espelho. Abrimos mão da nossa liberdade essencial e intransferível. O sol já não é mais o centro de nada faz muito tempo. O homem, então… antes sol, o homem agora se contenta em ser lua. Reflete a luz de uma tela maior que tudo. O novo centro do universo. Nosso personal iBang. Os tamagotchis éramos nós. Os espelhos éramos nós. Os outros éramos nós. Nossa guerra era particular.

Nessa “guerra particular”, onde o pronome “eu” é o eixo principal (como também, sintomaticamente, o termo mais recorrente no decorrer das páginas), toda a dramaticidade existente na narrativa se torna volátil, fragmentária e descontinuada (como no fluxo de consciência mais tradicional). Essa dramaticidade (diálogos aleatórios, jornadas errantes estrada afora ao volante, etc.) tem como fim acima de tudo as ressonâncias internas que provoca em Carlo, sem um valor intrínseco à narrativa (exemplo é o aparecimento da personagem Rudie Ruth no meio da história, jovem de dezessete anos que simboliza a “nova geração”, tão perdida quanto a do narrador).

Por esse mesmo motivo, não faz muito sentido falar em história em Eu, cowboy. No livro, acompanhamos as memórias sempiternas de Carlo Kaddish, artista plástico fracassado de trinta e poucos anos. Separado de Mailô e pai de uma filha pequena, a quem eventualmente visita, vive na “toca do Vampiro” com os amigos remanescentes da adolescência com quem compartilha — em diálogos presenciais, por e-mail, ou em noites agitadas pela capital do Pará — reflexões desalentadas sobre a existência, numa retórica tarantinesca que envolve cultura pop, música, literatura e filosofia.

Como dito, a narrativa é dotada de um tom sarcástico oriundo não apenas da personalidade de Carlo, como também dos bizarros acontecimentos que ocorrem à medida que a obra avança, e que têm como principal função caracterizar o nonsense da existência e do mundo. Essa não-progressão dos fatos é insinuada logo no início do livro:

Não sei onde essa história toda começou. Sei que termina aqui. Sei que não tem começo que compense o fim.

É, portanto, uma escolha deliberada e que se articula com o projeto frustrado de Carlo e seus amigos outsiders de dar início, no México, a sua própria “viagem iniciática”.

Nessa estagnação, Eu, cowboy parece confluir On the road e As três irmãs, e nos temas, bem como na caracterização dos personagens e dos ambientes nos quais circulam, entrevê-se a influência do teatro de Mario Bortolotto, da literatura Beat e de Céline.

Estilo
As opções estilísticas do autor, porém, não trabalham de forma a harmonizar o conjunto. Sua linguagem flerta mais com a oralidade que com a língua escrita, o que em si não é o problema: a questão é mais de equilíbrio. O autor parece estar firmemente convicto de que o caminho do excesso leva, não ao palácio da sabedoria, mas à estância da plenitude do estilo; o leitor, contudo, tende às vezes a se perder no caminho, não por falta de repertório cultural para lidar com as alusões pop e intelectuais, mas por esbarrar em gírias e construções idiomáticas nem sempre conhecidas.

Outro ponto está na construção dos personagens e em seu peso na narrativa. No que toca ao primeiro aspecto, tem-se a impressão ou que a empatia entre os amigos de Carlo (e os demais que se agregam ao grupo) é tanta que suas personalidades não se distinguem profundamente ou que o solipsismo do personagem principal (que também é o narrador, vale lembrar) acaba por “homogeneizá-los”.

Já no segundo aspecto, o leitor nutre uma expectativa em aprofundar certos personagens que psicologicamente oferecem (ou poderiam oferecer) mais que outros. Mas tais personagens (Hermano, Rudie Ruth, Manoela) não representam bem um ponto de virada narrativo, a sombra do personagem principal envolvendo-os quase que por completo.

O ritmo da escrita é outro ponto a ser abordado. Se por um lado a linguagem torna-se personalíssima pela variação diastrática do meio em que Carlo e seu bando circulam, por outro o ritmo frasal e as extensões dos períodos vão se modalizando de acordo com os movimentos internos do personagem, bem como nas situações e ambientes nos quais se encontra, seja num carro em movimento do qual saltará, em estado de embriaguez, seja numa lembrança de uma tumultuada partida de basquete:

Bate a falta. Passa pra mim. Catraca passou a bola. Sai quicando. Olhos nos olhos do Felipe, o agressor. O palhaço da oitava, duas séries acima. “Nem doeu, vai.”

Neste como em outros momentos, o autor entende o que o conteúdo demanda, e lida a seu modo com a questão.

Por fim, Eu, cowboy parece ser seletivo, por suas próprias escolhas, com o leitor, ou busca cativá-lo pela via da autenticidade, sendo que neste último elemento está seu principal atributo.

Eu, cowboy
Caco Ishak
Oito e Meio
165 págs.
Caco Ishak
Nasceu em 1981, em Goiânia (GO), embora tenha sido criado em Belém (PA) desde os cinco anos de idade. É escritor, jornalista e tradutor literário. Pela editora carioca 7Letras, lançou Dos versos fandangos ou a má reputação de um estulto em polvorosa (2006) e Não precisa dizer eu também (2013). Reside atualmente em São Paulo (SP).
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

Rascunho