A escrita flutuante

A experiência que a literatura oferece para o bom caminho de repetir e renovar o que amamos
Ilustração: Thiago Lucas
05/01/2024

A vida material é meu livro preferido de Marguerite Duras. Desse livro, O álcool tem as cinco páginas que mais amo, sempre. Pego meu exemplar na estante. Leio a folha introdutória de Duras: “Todos os textos foram ditos a Jérôme Beaujour… Depois os textos decodificados foram lidos por nós… A última parte do trabalho, consagrei a abreviar os textos”. Esse método de escrita em parceria — ditado, editado, lido e revisado — ficou na minha memória. Memória um tantinho recriada, pois falei do livro a vários amigos, muitas vezes, contando que Duras escreveu em dupla com Yann Andréa, seu último companheiro. Adoro esse amor: Yann Andréa, jovem que se apaixonou por suas palavras, quando a escritora era já velha. Uma paixão que nasceu através de cartas. Ele, que vivia para a literatura, só conseguiu escrever depois da morte dela. “Enquanto ela estava viva, só podia datilografar os textos que ela lhe ditava.”

Entretanto, em A vida material, Yann é personagem, não coautor.

Comprei meu exemplar num sebo; está anotado a lápis, na folha de rosto, oito reais. A tradução, vejo agora, é de H. (a editora Globo errou seu sobrenome). É uma edição de 1989 e, pelo que sei agora, nesse ano H. ainda não conhecia B.

Lá por 2010, talvez, B. me contou que perdia a visão, e isso o impedia de escrever. Prontamente rejeitei o lamento: “Duras escrevia ditando… Encontre alguém pra te ajudar, e siga escrevendo”.

H. também conhecia A vida material, e fez a B. a mesma sugestão — contrate um secretário, e siga escrevendo. Foi B. quem me contou: “H. me disse o mesmo”. Porém, na época, a secretária foi contratada apenas para responder emails e outros aspectos práticos. A escrita autoral foi quase abandonada. (B. só a retomou, anos mais tarde, com apoio de lupas e um enorme monitor).

“Este livro não tem começo nem fim, não tem meio. A partir do momento em que não existe livro sem razão de ser, este não é um livro” — assim Duras apresenta A vida material. “Longe do romance, mas próximo de sua escritura — estranho, visto que é oral… Hesitei em publicá-lo, mas não há formação livresca capaz de ter contido essa escrita flutuante.”

Duras ficaria ofendida, se meu livro preferido, entre os seus, é uma obra que ela não considerava “um livro”? Uma obra oral que não foi “escrita”, mas ditada e editada? Contudo, é ela mesma quem diz: a obra não é um diário, está “despojada do fato cotidiano”, e, por esse motivo, é próxima do romance. Obra repleta de elementos comuns — a casa, o trem, a roupa, o corpo, a tevê e a morte. Narra-se o material, com percepção elevada. O habitual se torno profundo. “Uma boa dona de casa, para os homens, faz da descontinuidade de seu tempo uma continuidade silenciosa e imperceptível. Essa continuidade é recebida como a própria vida, e não como um de seus atributos, o trabalho”, ela diz (escreve).

É assim, também, a literatura. Quem escreve transforma a descontinuidade de sua escrita (as sessões interrompidas por mensagens, familiares, horários de trabalho… as semanas em que é impossível escrever, e as retomadas) na continuidade de um texto que flui como a própria vida.

Muitos anos depois daquela conversa com B., sobre a perda da visão, ele e eu trabalhamos juntos, escrevendo em dupla. Nosso método era variado. Às vezes ele escrevia sozinho, com suas lupas e grande monitor; eu também escrevia em casa, sozinha. Em encontros semanais, conversávamos sobre os temas do livro — e, então, muitas vezes anotei histórias que ele me ditava. Entre a voz e as palavras no caderno, me senti aquecida pela coautoria discreta; conduzir a caneta, decidindo onde posicionar as vírgulas, quando iniciar ou encerrar os parágrafos… eliminando palavras, acrescentando uma ou outra, refinando a sintaxe aqui e ali.

Parte do meu amor por esse trabalho é reviver a escrita oral que aprendi em Duras. Tenho certeza, hoje, que o bom caminho é repetir e renovar o que amamos. “Tenho pena dos jovens” — escreveu Mário de Andrade em Vida literária (e cito de memória, não confiem demais nas minhas aspas) — “os jovens querem descobrir tudo, quando, na verdade, não precisamos descobrir nada”.

Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

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