Fim de lançamento à noite, na livraria, aparece um rapaz vagamente interessado e me pergunta: “esse livro seu é todo humano?”. Um lapso de segundos, eu olhando para ele, e ele completa: “ou você usou inteligência artificial?”. Mais alguns segundos, eu degustando o fantástico da coisa até dar com seu travo: de repente imaginar que livros de literatura amanhã venham com algum tipo de certificado de autenticidade humana, como compotas de geleia sem aditivos nem conservantes, ou que livros meio humanos meio máquinas venham com tarjas de aviso como os alertas de transgênicos em pacotes de milho para pipocas.
Então me ouvi dizendo apenas: “sim, esse é um livro todo humano…”. E como atestar a humanidade dos livros ou detectar por trás deles avatares sem alma? Pela qualidade dos erros? Quanto mais excelente o erro, quanto mais imprevisto o desvio, mais humano? Para o pensador dos nossos tempos Byung-Chul Han, a diferença está em que só o humano conhece Eros. Mais que um lance de dados, um lance de pele, de contato. A inteligência artificial, ele diz, “não é capaz de pensar porque não tem amigo, não tem amante”. A inteligência artificial não tem um coração pensante.
E que coisa mais desoladora imaginar um livro de poesia ou um livro de ficção que não seja todo humano… Que grande farsa um escritor abrir mão dos seus desacertos — seus “erros magníficos”, diria a poeta Maria Lúcia Dal Farra —, que fracasso tremendo um escritor delegar à inteligência artificial o poder e o prazer de criar pela linguagem o que quer que seja. Os livros já não seriam nossos amigos, nem seria verdadeiramente vital nossa relação com eles. E não estaria aí o atestado de falência do nosso contato uns com os outros?