Um café curto e forte com Ariana Harwicz

A argentina Ariana Harwicz não está nem aí para a boa reputação política entre seus pares; para ela, “escrever é ser um pária”
Ilustração: Mariana Ianelli
29/06/2024

Hoje temos um café argentino bem quente e sem açúcar: Ariana Harwicz. Sirvam-se, caros escritores da vizinhança, é degustação gratuita. Fosse café de safra brasileira, por mais excepcional e forte, nosso meio literário provavelmente iria ignorá-lo o quanto pudesse, ou, não mais podendo, lhe cairiam em cima. Porque Ariana não está para boa reputação política entre seus pares.

Quem quer ser escritor e quem escreve, para Ariana, não são a mesma pessoa, e o artista bem-sucedido dos nossos tempos é o que se consagra por exércitos de tietes e seguidores. Quem, dentre eles, assume as próprias contradições? Quem arrisca sua “figura de escritor” e escreve o que tem de escrever, sem ouvidos nem olhos para agentes, prêmios ou fã-clubes?

Sintam só que café mais vigorante! Lembrar de repente a possibilidade de existência de um escritor que… escreve! Um escritor que escreve sem necessidade de se adequar ao oportunismo das pautas de época assimiladas pelo mercado literário. E o café continua quente: “lê-se para apagar-se, para romper com a mentira do eu”, não por “identificação com o que é idêntico a si mesmo”.

Escrita “autobiográfica”? Para Ariana, uma falácia. O termo “autoficção” talvez até lhe provoque gargalhadas. As ridículas nomenclaturas, o comércio das boas causas, o profissionalismo do escritor de carreira a serviço de demandas políticas e sociais, o palco dos medalháveis que se badalam sob os holofotes, Ariana sabe e não desconversa do antiliterário disso tudo que se faz passar por literatura: “O âmbito público é uma fraude”.

Ela aposta que “escrever é ser um pária”. E dá para evitar o riso de canto de boca, ao pensar nisso, com tantos escritores empenhados em se entronar? E se eu te contasse, Ariana, que, aqui no Brasil, até cronista que antes não subia nem em caixote agora veste fardão? Tão respeitáveis e respeitosamente inseridos esses nossos escritores em louros bordados com fio de ouro! Quem arriscaria trair a chancela pública (e sua vigilância inquisitória), quem jogaria com o orgulho próprio, para “escrever a vergonha”? Quem, justamente porque escreve, “deixa de ser o que é”?

Um café curto e forte, para tomar logo pela manhã ou ainda de madrugada, fora das redes sociais. Um café para acordar para a escrita dissidente e insubmissa. Acompanha a dose, também para degustação gratuita, uma lista de obras selecionadas por Ariana, entre as quais estão livros de Thomas Bernhard, os diários de Sándor Márai e Etty Hillesum, e os quadros de Séraphine Louis.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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