Selvagens e feiticeiros

A afetuosa e instigante amizade entre os geniais Clarice Lispector e Fernando Sabino
Ilustração: Mariana Ianelli
26/10/2024

Como é que a gente fica depois de ler as cartas trocadas entre Clarice Lispector e Fernando Sabino? A cronista aqui neste primeiro quarto do novo século mal acredita numa relação assim, tão franca e digna entre escritores a ponto de um segredar ao outro as próprias incertezas e angústias…

Tentem pensar numa Clarice entre quatro paredes, não a mitificada esfíngica, nem a Clarice ouro de exportação, mas uma Clarice acometida por súbitos desânimos, uma escritora de instável autoconfiança, que se pensa “sempre errando”, em geral malcompreendida, sendo isso, para ela, uma espécie de liberdade. Uma Clarice ansiosa por publicar logo o que escreve para poder livrar-se de seus textos.

Muito amigo, Fernando aviva o ânimo de Clarice, escreve-lhe cartas que são verdadeiras crônicas do seu tempo e espírito, e, enquanto ela mora em Berna, depois em Whashington, ele, já de volta ao Brasil, depois de sete anos em Nova York, tem a mão estendida para ajudá-la à distância com a publicação em jornais e editoras.

Quando começam a se escrever, em 1946, Clarice em Berna, Fernando no Rio de Janeiro (prestes a se mudar para Nova York), se nos atemos à letra de ambos, nem chegamos a nos dar conta de que estamos diante de uma correspondência entre jovens na casa dos vinte e poucos anos (Clarice com 26, Fernando, 23). Tal a maturidade no teor dessas cartas que nem pensamos na idade de um e de outro, uma maturidade que tem de meninice o que gente madura tem e sabe dispor, desavergonhadamente. Todo o dito e interdito são ali muito francos, com intimidade de alma.

Fernando “crê” em Clarice. É como ele diz: “Creio muito em você, tanto quanto às vezes creio em mim mesmo”. E o medo que ele tem envolve o coração dessa amizade: “medo de nós falharmos”. Algo os une que não é literatura, embora isso se entreveja também em seus livros. Eles compartilham leituras e manuscritos, notícias dos amigos (os “quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse” sempre “meninos”, também bons epistológrafos), notícias do Brasil, os lançamentos do momento e os rumores da crítica (Guimarães Rosa, por exemplo, “fazendo furor” com os contos de Sagarana).

E mais, contam-se mais, contam-se os sonhos terríveis, as “molecagens literárias”, passando pela prova de fogo, sem drama, mais até: gostosamente, de saberem rir de si mesmos. Clarice e Fernando então chegam a isto: se agradecem, simplesmente se agradecem, por nada além de coexistirem estupendamente vivos e amigos. “Muito obrigado, Clarice.” “Não sei como agradecer sua amizade, Fernando.”

Dá uma brisa de esperança reabrir essa correspondência hoje, na reedição caprichada da Record, com fotografias, recheio de notas, capa dura, e pensar que essas cartas ainda possam semear novos corações selvagens e aprendizes de feiticeiro. Se não chegarem a tanto, que nos atestem não ser lenda, neste mundo de ilusões, uma amizade assim alguma vez ter existido. Pois então é desse jeito que a gente fica, ao ler as cartas de Clarice e Fernando. Esperançosa.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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