Palavras sobre palavras

Raduan Nassar e Hilda Hilst deram as costas para o meio literário e construíram uma imagem de admirável sobriedade
Ilustração: Mariana Ianelli
24/02/2024

Nesses tempos em que quase tudo nos incita a escrever, levantar a voz, mostrar o rosto, haverá também quem se dedique ao oposto disso, alguém que esteja por aí escrevendo cada vez menos, modulando silêncios, praticando seu direito à sombra. Pode também exigir muito trabalho e muita coragem, isso de desaparecer.

Está fazendo quarenta anos que Raduan Nassar desapareceu do meio literário. Não se trata exatamente de uma efeméride, mas faz bem lembrar. Sim, esse é um caso excepcional na literatura brasileira, quem não sabe? Em menos de dez anos, Raduan escreveu sua obra completa, foi saudado, fez seu lugar entre os grandes, e então, em 1984, comprou a fazenda Lagoa do Sino (que ele doou para a Universidade Federal de São Carlos em 2012), em Buri, no interior de São Paulo, e declarou publicamente que havia abandonado a literatura.

Há um pudor em torno desses casos extraordinários que implodem com a orgulhosa construção de uma carreira. Quem cogita na ideia e no gesto, sem a pena da vaidade, não sai alardeando, não leva o assunto a pleito. Hilda Hilst, quando publicou seu Amavisse, também dava seu adeus à literatura. Ela ainda voltaria, com outros livros, mas o gesto, àquela altura do caminho, prestes a completar sessenta anos de vida, e quarenta de poesia, foi libertador para Hilda.

Tanto Raduan quanto Hilda deram as costas para o meio literário. No caso deles, nem deserção nem desistência. O “sentir-se livre para fracassar” de Hilda, repetindo Bataille, era um desatamento. E fossem poucos os livros, caso de Raduan, ou dezenas deles, caso de Hilda, era um já ter feito e também um estar farto, o que parece luxo e é coisa consumada.

Continuam os que não se fartam, os que estão atados por centenas de fios, enredados no meio e no métier, a caminho, com muito fogo a consumir e potência a consumar. Palavras sobre palavras sobre palavras. Mas também continua a ser possível, quiçá desejável, ou sábio, ou de bom gosto, não acabar soterrado pela própria avalanche. Um escritor que faz caber entre as mãos tudo quanto ele já escreveu na vida será sempre uma imagem de admirável sobriedade.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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