Minha filha ainda é uma criança, mas já conta em poucos dedos os anos que faltam para virar moça. Em tom de segredo cheio de orgulho e olhos grandes, ela me fala das mudanças que vai vendo em seu corpinho. Digo-lhe sempre que não se apresse, mas agora a rápida metamorfose atropela meu conselho e povoa de fantasia o olhar da minha menina para novas delicadas penugens e curvas. Infiltro-me na fresca inocência desse maravilhamento para soprar feito brisa algumas recomendações para a viagem que se aproxima, uma longa viagem de vias e paisagens imprevistas às quais irá apenas minha filha com seu corpo, sua consciência, seus afetos, seus sonhos, seus valores.
Antecipo-me à erupção do fogo desordenador pensando nos edifícios projetados para áreas de subsolo instável, esses que se aguentam em pé absorvendo profundos tremores com sua estrutura balançante. Cuide bem dos seus olhos, meu amor. Cuidado com o que entra por eles e desce até seu coração. Há coisas que, se deixamos entrar e descer ao fundo, dão pesadelos, nos machucam, e não se apagam facilmente. Cuide de tudo o que você, podendo escolher, leva para dentro dos seus olhos, da sua boca, do seu corpo, que é sua casa primeira, intransferível e preciosa. Use seu faro quando faltar clareza, minha filha, e apure os ouvidos, como uma daquelas raposas que você faz tão bem em origami, com aquelas orelhonas em riste captando atmosferas e humores.
Repare só, minha pequena, que quanto mais atenção você põe no que faz, mais rica ficam suas histórias e memórias. Repare quantas coisas também falam sem palavras. Fique atenta. Também, podendo escolher, nem tudo você deve trazer do coração à boca. Há palavras que confundem, palavras que ferem. Lembra que sua boca, seus olhos, suas mãos, seu corpo são fonte de criação e poder criar é também imensa fonte de alegria. Sonhe bem, minha filha. Sonhe sempre. Vou arejando o peso da viagem com essa fina brisa, e afinal não há mais nessa bagagem do que aquilo que está ao nosso alcance e é de nosso uso todos os dias…