Digamos que a agonia seja lenta

No escuro da Terra desconectada, o caos revela pequenas belezas — lampejos de humanidade diante do fim anunciado
Ilustração: Mariana Ianelli
08/11/2025

Afinal, cadê o asteroide que dará cabo da gente? De quando em quando, astrônomos soltam alertas. Mas, até agora, nada. Que gloriosa chance seria essa, não? De transferir para o universo nossa culpa pela extinção da Terra… Não fossem já nossos trabalhos largamente competentes na prosperidade desse fim. Tudo indica — palmas para a imprensa pródiga de horrores! — que seremos bem mais rápidos e eficazes que os mensageiros vindos de longe.

Mas digamos que a agonia seja lenta, pouco antes do fim. Que antes de desequilibrarmos completamente os ecossistemas, o clima, o ar e as águas, antes de nos massacrarmos uns aos outros até a total implosão das diferenças, que aconteça algo de fato surpreendente, digno de nota, além das sucessivas extinções das espécies. Algo provável, aliás, no quadro das ameaças apocalípticas: uma tormenta solar capaz de destruir nossos satélites.

Apagão global, pane das máquinas, desfazimento das redes, zerar das contas bancárias, um novo ensaio sobre a cegueira, agora com os nossos olhos bem abertos no escuro da Terra desconectada. Todos nós, gatos pardos na noite imensa. Todos metidos em dias de caos e, dentro desse estupendo caos, alguns focos (que sempre os há, mesmo no meio da catástrofe) de singela beleza.

Alguém acenderá, maravilhado, um candeeiro muito antigo que antes servia só de ornamento. Alguém se sentará para contar histórias em rodas humanas concêntricas. Alguém tomará, com gosto, o tempo desregrado como uma trança desfeita entre os dedos. Esses e outros focos de beleza, de olhos estreando em descobrimentos, tardiamente. Alguém puxará um papel e irá se admirar com o desenho da própria letra. Alguém olhará para o céu noturno com o assombro das criaturas pequenas.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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