Carta sonhada para Ingeborg Bachmann

Entre as cartas de amor entre dois poetas, surge a figura da esposa traída, a flor mais rica dessa história
Ilustração: Mariana Ianelli
27/01/2024

Faz 16 anos que suas cartas pessoais se tornaram públicas. As cartas enviadas (e as não enviadas) a Paul Celan, também as cartas e os postais dele. Qualquer um pode agora entrar nesse recanto secreto da história de dois dos mais célebres poetas em língua alemã do pós-guerra, que, desde a primavera de 1948 em Viena, e por mais de uma década, entre França e Alemanha, se amaram em poemas, breves encontros e cartas.

E como esse amor lhe fazia mal, Ingeborg! Quanta ofensa seu coração reconsiderou por saber ser, mais do que amante, um coração de amiga. O coração do outro? Um sempre desconfiado, murado, mais dado à morte do que à vida. Ainda assim, sua atenção estava ali, para aquele amante esdrúxulo, avaro em palavras e cuidados, cioso apenas da própria honra e das próprias feridas, seu amor estava ali, ultrapassando silêncios de pedra, e que destoante era essa disponibilidade, essa entrega…

Até que seu coração pendeu para a vida e finalmente se desengatou daquele peso de treva, não um coração completamente curado, é verdade, mas vivo, ainda, vivo e lúcido como o sol dos seus poemas, Ingeborg, mesmo com toda a treva à espreita, mesmo faltando mel à colheita, o sol. Se também houve algo soalheiro, nesse encontro de meandros funestos, foram seus braços abertos, sua sinceridade de palavra atada a gestos, sem jogos.

Consumiu muito do seu ânimo, esse amante esdrúxulo, mas o enredo desses anos todos de cartas também lhe deu uma amiga improvável, a bela e infeliz Gisèle, que era tão sábia e tão grande em seu amor a ponto de perceber melhor do que o marido a amante dele. Ainda o tempo as enquadraria juntas, em Roma, por duas vezes, em dezembro de 1970, já não havia Paul Celan. É bem provável que, ao lado do tão mais apelativo romance intrincado entre poetas, essa outra discreta e suavíssima amizade entre mulheres não alce à fama. Mas talvez esteja aí, justamente, a flor mais rica dessa história. Mais até que a flor da morte.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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