“Cadê você, paixão?”

A afetuosa troca de cartas entre Neide Archanjo e Betty Milan, com assuntos da vida diária e de vidas sonhadas, viagens e carinhos
Ilustração: Mariana Ianelli
27/04/2024

Faz dois anos da morte da poeta Neide Archanjo e agora a escritora e psicanalista Betty Milan torna pública a correspondência (ou parte dela) de um período de dez anos (1982 a 1992) em que as duas estiveram intimamente próximas, compartilhando assuntos da vida diária e de vidas sonhadas, viagens, conquistas profissionais, favores, carinhos e alguma poesia.

O cenário dessa época se alterna entre São Paulo, Paris e o interior da França, onde Betty vivia ou se refugiava para escrever, e São Paulo e Rio de Janeiro, ambas cidades onde Neide morou. O azul e o sol dos pré-carnavais cariocas de Neide em palavra espontânea compõem com os roteiros culturais parisienses e vinhedos do Loire num tom très chic de Betty.

Uma dá notícias do seu fazer poético (Neide terminava As marinhas em 1984 e começaria em 1986 a escrever Pequeno oratório do poeta para o anjo), outra fala da escrita dos seus romances (Betty publicaria O papagaio e o doutor em 1991, depois viria A paixão de Lia). Uma irradia amor em desejo de encontro e convívio lento, outra alimenta a chama pondo em prática esses encontros dentro de uma grande teia de outros afazeres e relações. Uma se diz “a serafim” da outra e a outra veste seu papel de musa.

Betty depois revê o narcísico dessa posição de musa e extrai disso algo a mais que “o amor por ser amada”: também que, por essa relação de “dama e trovador”, a poeta desabrochava em sua alegria verbal, o que é verdade. Seriam assim, por essa rega mútua, “amantes da palavra” seduzindo-se e cortejando-se pela escrita. Mesmo superlativo, um paralelo com a amizade entre Alejandra Pizarnik e Silvina Ocampo serve para ilustrar o peso da paixão pendendo sempre perigosamente para um dos lados. Essa paixão, aderindo à pele da vida, transbordando das palavras, levava Neide a pedir para Betty, por exemplo, “uma folha de outono de verdade”.

Mas sedução e sonho pedem demora, vagar, algo de flutuante, e nessas cartas há uma velocidade a concorrer com essa demora, ganhando dela, uma brevidade contendo em bordas as ocasiões de sonho. Pensar no epistológrafo voraz que foi Mário de Andrade, que transbordava em paixão por muitas páginas inesgotáveis, seria um tanto descabido a não ser por isso mesmo: essa outra velocidade nas cartas de Mário, essa demora. Se “as amantes da palavra” não se abrem para outra temporalidade em suas cartas, não é por falta de vontade de Neide: ela transbordaria se Betty lhe alteasse poeticamente um pouco mais a chama.

Mas as amigas estiveram juntas por bons dias em Paris e na região do Loire, quando então terá havido demora. Com esses “momentos de esmeralda na lembrança”, e procurando “a cor de cada palavra”, Neide criava seu jardim impressionista. Ali estavam dálias vermelhas sob uma chuva de outono, uma montanha cercada de bosques e vertentes, Betty com chapéu de palha rodeada de glicínias e um só relógio contendo as horas simultâneas em Paris e no Rio de Janeiro.  Neide alimentava, na proporção da sua alegria, essa outra duração do amor amigo, esse país flutuante de visões, e reclamava para ali a presença querida: “Cadê você, paixão?”. Era assim que se queixava da falta de uma carta, sendo também essa, no fundo, a queixa de um coração.

Com o desconto de tudo o que fazia encolher esse país de sonho, por exemplo o trabalho de Neide no departamento jurídico da Petrobras na época do pesadelo Collor, demandas com prazo, ânsias de produtividade, correio falho, desencontros, ficam algumas linhas abrasadoras e uma ou outra feliz provocação que repercutem, a escrita como pedra de Sísifo e a vida “linda e dura como um diamante”. “Quem está longe está sempre enganado?”, pergunta a poeta mais de uma vez. Excelente pergunta para se fumar de vez em quando, olhando ao longe.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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