O bom e velho

Quando sono de um vira-lata, que chegou todo estropiado, vale um mundo inteiro
Ilustração: Tereza Yamashita
01/05/2023

Já faz alguns dias que eu estou às voltas com o tema desta crônica. Não que a vida ande parada, mas nada nos últimos tempos tinha sido suficiente para acender uma luz. E teve viagem, teve sufoco, teve despedida. Teve até um início de texto, o pernilongo e a livraria, mas faltava um gancho, uma bossa, qualquer coisa. Daí hoje mesmo, naqueles minutos depois do almoço, antes de lavar a louça, o corpo esticado só o tempo suficiente para que não se desista, tudo aconteceu.

Ele chegou, discreto como sempre, se sentou ao meu lado na cama e ficou me encarando. Encarei de volta. Era a deixa que ele precisava. Esticou uma das patas, que colocou de leve por cima da minha mão. Ele é o Vicente e o que ele dizia era: por favor, uma coçadinha na minha barriga, humana. Vicente Van Dog é o vira-lata caramelo que está em lar temporário aqui na minha casa. Para os não iniciados em proteção animal, eu explico: lar temporário é uma casa que se oferece para receber um cachorro resgatado até que ele possa encontrar um tutor definitivo. Vicente, que tem esse nome por causa da simpática metade de uma orelha que lhe falta, está em lar temporário desde dois mil e dezoito. Já são quase cinco anos e eu procurei um tutor definitivo pra ele exatas zero vezes.

Mas, também, ele planejou tudo: chegou estropiado, uns buracos maiores que moedas de um real (quando ele chegou elas ainda eram frequentes), as costelas querendo rasgar a pele e os pelos que não brilhavam nem se eu jogasse glitter. Ele chegou assustado, faminto, arredio. Gripado, com conjuntivite, com medo. A conduta só podia ser uma, é claro que ele precisava ficar mais apresentável antes que eu divulgasse as suas fotos e qualquer texto simpático em primeira pessoa canina dizendo que ele precisava de uma casa. Que ele adorava crianças. Que ele merecia ser feliz.

Ele precisou de uns três meses pra ganhar algum charme, e nem dois dias pra ganhar o meu coração, de modo que não, nunca ofereci o Vicente para nenhum outro tutor. Nem vou, ele é meu. Já me acompanhou em uma mudança de casa, já perdeu dois irmãos caninos e viu chegar uma nova, com a energia de oito. Já roubou uma peça inteira de picanha do fogão. Já teve sua respeitosa cauda esmagada no portão, a pele lacerada, o osso quebrado, os pontos, os remédios, o balde.

Já passou aperto, o Vicente. E aí, quando eu olho pra ele aqui do meu lado, a orelha e meia em posição de descanso, os olhinhos querendo se fechar, eu sinto uma coisa enorme. Quando ele aceita que esse friozinho pede carinho e deita de barriga pra cima (nem sinal de costelas por aqui) e começa a roncar em nem um minuto, deixando saber que ele se sente seguro, que ele se sente tranquilo e, talvez até feliz, eu penso que é no miúdo que mora o bonito. Que ele é só um de tantos e tantos e tantos vira-latas, mas que esse sono aqui é pra ele, e pra mim também, um mundo inteiro.

Marcela Dantés

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1986. Lançou em 2016 a coletânea de contos Sobre pessoas normais (Patuá). Seu primeiro romance, Nem sinal de asas (Patuá), foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2021 na categoria Melhor Romance de Estreia e do Prêmio Jabuti 2021, na categoria melhor Romance Literário. Em 2022, lançou João Maria Matilde, pela Autêntica Contemporânea.

Rascunho