Como se nada

Outubro começa: muita coisa deixou de acontecer, mas outras tantas foram resolvidas e fica a sensação de sobrevivência
Ilustração: FP Rodrigues
02/10/2023

Aconteceu. Trinta de setembro e eu a vi, a primeira decoração natalina. Palpitações, porque você bem sabe o que ela significa: o fim do ano, quiçá o fim do mundo.

Outubro chegou e eu ainda não terminei de arrumar a estante. Ainda não fui promovida. Ainda não superei aquela história que, coitada, nem chegou a ser uma história. Ainda não voltei para academia (logo não perdi aqueles quilos). Outubro chegou e eu não economizei, não resolvi o problema das formigas no meu pé de jabuticaba e nem dos pulgões no pé de limão — e ainda assim, os primeiros limõezinhos insistem em nascer e os meus olhos ficaram molhados quando eu vi isso, porque é bonito e porque é improvável (como se a natureza pudesse ser improvável) e porque é bem aqui, debaixo do meu nariz, no meu jardim, no jardim das formigas, dos pulgões, dos cachorros e de uma passarinha muito brava que vigia o seu ninho com a ferocidade com que eu vigiava o meu (e isso também encheu os meus olhos d’água e pensando agora, acho que setembro me deixou muito sensível ou talvez não tenha sido o mês, mas a vida ou outra coisa que eu não sei o nome mas sei).

Outubro chegou e eu ainda não troquei a lâmpada da cozinha, já são uns três meses cozinhando no escuro. Eu ainda não aprendi a assobiar e já são trinta e sete outubros assim. E também janeiros. Outubro chegou e trouxe os primeiros piolhos desta casa, daquela cabecinha tão acelerada e inventiva, na verdade achamos que foi um piolho só, mas é o suficiente pra fazer um estrago e você sabia que agora se toma ivermectina para piolho, pra isso ele funciona, mas eu fiz questão de deixar bem claro pra moça da farmácia, veja bem, é piolho, tá?

Outubro chegou e talvez ainda seja cedo pra dizer que temos uma playlist do ano, mas talvez não, e a minha é muito bonita, mas também dá vontade de chorar (nenhuma novidade) e se você pudesse escolher, escolheria uma playlist digna de aplausos ou viver aquilo que dá vontade de viver? Eu escolheria viver, mas não sou eu que escolho, outubro chegou. Perdi o timing. E ainda não organizei os e-mails.

Revelei o filme.

Revisei o conto.

Enviei a carta.

Arrumei a gaveta.

Atualizei a planilha.

Repeti o exame.

Mas já aconteceu tanta coisa.

Eu acho, mais ou menos, que sobrevivi. E você?

Marcela Dantés

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1986. Lançou em 2016 a coletânea de contos Sobre pessoas normais (Patuá). Seu primeiro romance, Nem sinal de asas (Patuá), foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2021 na categoria Melhor Romance de Estreia e do Prêmio Jabuti 2021, na categoria melhor Romance Literário. Em 2022, lançou João Maria Matilde, pela Autêntica Contemporânea.

Rascunho