(31/10/20)
Hoje é dia 31 de outubro. Lá fora é comemorado o Halloween, e aqui é o aniversário de Carlos Drummond de Andrade. Não precisamos invejar o povo do mundo anglófono no que se refere aos doces, pois aqui temos o nosso Dia de Cosme e Damião. Mas eles, por outro lado, não têm um Carlos Drummond de Andrade.
E que sorte, neste ano, cair num sábado, o dia mais poético da semana, segundo estudos que acabei de inventar.
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Estudei numa escola pública chamada Ciep Carlos Drummond de Andrade. Isso antes de morar na Rua do Escritor. Tornei-me escritor, e a sala de leitura da escola deixou de ser Monteiro Lobato e passou a ter o meu nome.
Agora é bom celebrar, mas não era tanto na época, que era de pobreza e dificuldade, e essas pistas literárias não passavam de referências abstratas e distantes para jovens como nós. Para gente como nós.
Cada vez mais entendo como os mais pobres precisam de muito mais aprendizado disponível, porque na corrida da vida largam com muita desvantagem, e é muito doloroso cobrir essa diferença ao longo do percurso. A lembrança é uma paisagem na parede. Mas como dói.
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Aprendi poesia com Drummond também além da escola. Na adolescência decorava poemas, que depois escrevia ou declamava para as meninas dizendo que os tinha inventado ali, na hora, repentista do caô.
Isso sim era poesia práxis, mais para práxis do que para poesia. Então cada verso tinha essa relação quase excessivamente direta com a vida. Por isso me vinha a ideia de que nas escolas não se deve jamais perguntar o que o autor quis dizer, e sim que o que você pode dizer com esse poema. Mesmo para ser rejeitado.
Amar o perdido deixava confundido este coração.
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Há uns anos publiquei um romance que se passava no início dos anos 1990, O próximo da fila, para rememorar como foi crescer num subúrbio durante a hiperinflação e todos os perrengues da chamada Era Collor. Logo no início, o protagonista ganha do pai uma nota de cinquenta cruzados novos, aquela com a efígie de Drummond, com um trecho do poema Canção amiga. O pai se foi, a nota logo deixou de valer, mas seria levada pelo jovem ao longo de todo o livro.
Porque enquanto se cresce vamos deixando coisas para trás. Mas o coração continua.
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Há um ano estive em Bruxelas, onde fui convidado para participar de uma residência artística. O objetivo era criar um filme, cujo mote deveria abordar questões ambientais. Não sei ainda como foi possível, mas fizemos uma história pós-apocalíptica evocando Drummond.
E agora, José? E agora, você? Porque são seres como nós, de mesma fisiologia e intelecto, com alguma variação intencional e de caráter, mas nossos iguais de raça humana, que acendem cada fósforo.
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Drummond ensina também a técnica. O verso livre, o fixo, a palavra nova, a rebuscada aplicada na hora certa com um sentido maior que o exibicionismo. Em poesia, boa parte da complexidade fica nos bastidores, só uma parte entra no palco.
Ou melhor: o poema é uma travessia de pinguela entre a palavra e o sentido. Não é uma ponte larga, que é a prosa. Só uma pinguela, com risco e precisão, sem muito espaço. Mas que felicidade chegar ao outro lado.
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Sim, hoje é Dia das Bruxas, mas também aniversário de Carlos Drummond de Andrade.
Ele disse no final do poema A bruxa essa meia dúzia de redondilhas que, tal como na juventude, guardei para oferecer ao próximo:
Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência
exalando-se de um homem.