(01/10/2020)
Quando minha mãe morreu, a minha primeira emoção não foi a de tristeza. A tristeza permeou as nossas vidas durante toda a sua doença. A tristeza veio antes. Veio muito antes, em cada diagnóstico, em cada exame, em cada internação, em cada cirurgia, em cada dificuldade. A tristeza nos acompanhou, de uma forma muito presente e cruel, muito antes.
Eu, sentada na cadeira do hospital, falando com um jornalista, minha mãe morta na cama ao lado. Não lembro qual jornalista e não importa. O que eu pensava era no desperdício. O desperdício de vida, de tempo, de afeto. Inteligência ela tinha até mesmo para desperdiçar, então não contabilizo. Desperdício.
Morta, não conseguia ouvir os elogios que eu lhe fazia ao telefone. Estou em paz porque fui homem o suficiente para lhe dizer tudo em vida. O bom e o ruim. O privilégio e a dificuldade. Tudo. Nada (mais) a dizer.
Enfermeiras manipulam o corpo inerte de minha mãe. Preparos, dizem. Foi ali que ela expirou. Sem qualquer cerimônia fecham todos os buracos com uma pistola de silicone. Exatamente a mesma, do mesmo modelo e marca, que eu usava para montar aquários na minha adolescência. A coincidência me chocou mais do que o ato em si. Brinquei na minha cabeça com a ideia da minha mãe morrer com muitos peixinhos guardados dentro dela. Sorri. As duas enfermeiras devem ter achado que eu era louca. A estranheza delas me devolveu à realidade.
Estamos sozinhos, meu pai e eu, naquele quarto.
Seremos, por um longo tempo, sozinhos, meu pai, meu filho e eu. Fingimos escapar da solidão por caminhos diferentes, falhamos da mesma maneira, os três.
A minha expectativa por determinados acolhimentos também fracassa.
E o corpo da minha mãe, morto, deitado do meu lado.
Há um silêncio insuportável.
Silêncios, ausências, telefonemas inexistentes, mensagens não enviadas. O apoio não recebido dói na carne, dilacera o peito da gente.
Penso em várias pessoas que desperdiçam afeto. Pensava nisso naquela cadeira de hospital, celular na mão, de costas para a janela, olhando para a porta. Penso hoje. Pessoas com um déficit emocional tão grande que não percebem o quanto tudo é passageiro e o quanto somos pequenos.
Como uma filha consegue dar essa notícia à mãe de sua mãe? Mesmo antecipando a recepção da ligação, a fiz. Não foi a primeira ligação. Deveria ter sido. Não consegui que fosse. Mais uma grande falha para a longa lista da minha vida.
Viro a cadeira para a janela, tentando perder o olhar no horizonte. O truque não funciona. As pessoas que deveriam estar lá continuam ausentes.
Volto às pessoas que ocupavam uma posição em nossas vidas merecedoras de notificação. Não deu trabalho. Eram e são poucas.
“Meus pêsames”, recebo por whatsapp. Se isso é tudo que você consegue me dar, por favor fique calado. Dispenso os formalismos. Enfia a sua educação você sabe exatamente onde. Quero o seu afeto, quero ver que doeu em você também. Qualquer coisa menor do que isso não me basta. Também não me bastam a anestesia, a dor suprimida, a ferida escondida. Seja homem e vem aqui chorar do meu lado.
Penso naqueles que não conseguem dizer “eu te amo”. Ou pior, que não conseguem sentir o “eu te amo”. Que seguem vivendo suas vidas anestesiadas, seguras, sem riscos. Que não querem saber de problemas, principalmente se o problema lhe pertencer. Pessoas que preferem não sofrer, sem perceber que isso também significa não viver, não amar, não se alegrar.
Minha mãe não desperdiçou vida, mas ali, ela morta naquela cama de hospital, nada mais fazia sentido para mim. Era tudo desperdício.
No mesmo dia, poucas horas antes, recebi a notícia que eu, então com 46 anos de idade, tinha conseguido retornar ao mercado de trabalho formal depois de 25 anos afastada. Eu estava orgulhosa de mim mesma. Não pela conquista em si, mas por ter tido coragem. Coragem que herdei da minha mãe. Eu queria contar para ela. Mas ela estava morta.
Estava morta do meu lado.
Não existia absolutamente nada que eu pudesse fazer. Ela continuaria morta, independentemente das minhas ações.
Esse dia, o décimo do mês de julho de 2017, foi um dia de ausências. As que me doem ainda hoje são as daqueles que estavam vivos. Que foram covardes.
E eu explicando pro jornalista que, não, ela não falou nada para ninguém porque sabia que a vida que ainda lhe restava seria desperdiçada. Que o pânico da morte iminente impediria o organizador de eventos de convidá-la. Que o receio do assunto inevitável se tornar mais importante que a literatura evitaria que o editor a chamasse. Quanto mais importante é a agenda do cidadão, maior sua covardia.
Todo desperdício é sempre um ato de covardia. E toda covardia é, também, um desperdício. Sem exceções.