Todo vento que vem da montanha chove

O ócio e a contemplação são fundamentais para o trabalho dos escritores — algo que a maioria das pessoas não entende
Ilustração: Eduardo Mussi
02/03/2025

Tínhamos acabado de chegar com um sol de 50 graus. A praia do verão eterno. Eu e minha filha selecionamos aquele pedaço de manhã para a gente. Impossível aparecer em uma praia do Rio de Janeiro sem que dezenas de alugadores de cadeiras e guarda-sóis surjam. Aceitei as cadeiras e o guarda-sol. Quando o rapaz estava arrumando a nossa mobília na areia, olhou para o morro do lado direito e disse: “Vai chover. Todo vento que vem da montanha chove”.

Achei linda aquela frase. Simplesmente porque ele fez do vento o sujeito da chuva. Poderia ter dito de outra forma mais comum de se dizer, mas optou por esta. Anotei no celular para não me esquecer. Minha filha me olhou com aquele ar de que escritores são todos sem-noção ou algo semelhante. Sim, ela sabe como é conviver com alguém que escreve mesmo sem escrever e, que, ainda quando parece estar à paisana, continua a postos para não correr o risco de perder um momento inspirador.

Pensei duas coisas: primeiro que a inspiração tem tudo a ver com respiração. Esse conceito parece óbvio, mas, vamos combinar, para alguém que trabalha em horário fixo, com férias datadas em calendário, fica difícil entender. Qual escritor ou artista que já não precisou justificar o ócio? Escrever não é uma profissão vista como um trabalho muito menos o processo de criação da escrita literária. E o processo de criação passa pelo “ócio”. Montaigne valorizava a contemplação e a introspecção como elementos fundamentais para o pensamento e a escrita. Em seus Ensaios, ele enfatiza a importância da experiência pessoal, da observação e do ócio produtivo para o desenvolvimento da expressão. Acho que a minha filha não é capaz de entender isso, nem aqueles que convivem com a gente de perto, familiares e amigos não escritores. Só quem está imerso no processo de criação, que vive na pele o ofício de ser escritor, entende.

Talvez esta pouca valorização do escritor em sua necessidade de recolhimento e contemplação esteja ligada à pouca valorização da leitura no Brasil. Quando vemos as feiras literárias lotadas, sentimos grande alegria, mas ainda falta muito para sermos um país literário, começando pelo insano número de analfabetos e… vou falar: o mutirão dos que sabem ler, mas ignoram os livros e têm aversão à ideia de leitura — acham chato, cansativo, preferem outras formas de entretenimento.

Enquanto isso, os escritores são aqueles que insistem. Insistem em escrever mesmo com tantas adversidades em busca de leitores e condições melhores de produzir e vender seus livros. São aqueles que precisam justificar seu processo de criação para os que perguntam se não vamos trabalhar em vez de “escrever livrinhos”. Sim, eu já ouvi essa pergunta. Eu vou seguir insistindo e fazendo do meu momento — praia, a necessidade de recolhimento e respiração, entre outras paisagens. Preciso deste verbo composto olhar-o-mar para existir na minha condição de artista literária. Quando um vento me sopra uma chuva inesperada de inspiração, então, já ganhei a manhã de trabalho…

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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