Que horas fecha?

O gosto por lugares que não fecham, quando as luzes não se apagam, quando há gente povoando ruas — o movimento de idas e vindas é acalentador
Ilustração: Marcelo Frazão
01/06/2025

Até bem pouco tempo não tinha percebido o fundo submerso de uma pergunta que faço com frequência nos lugares aonde vou, sejam eles mercado, farmácia, restaurante, qualquer estabelecimento. Sempre pergunto que horas fecha. Uma dúvida banal e sem muita complexidade esconde algumas raízes profundas. Descobri isso recentemente.

Geralmente, a pergunta acontece de noite. Em geral, não tenho pretensão de chegar a nenhum destes lugares quase na hora de fechar — então por que a pergunta insistente? Percebi que gosto quando os lugares não fecham, quando as luzes não se apagam, quando há gente povoando ruas. O movimento de idas e vindas é acalentador.

Simples a associação com um ancestral medo do escuro ou da solidão ou tudo isso junto. Consigo identificar alguns focos onde estes pavores se alojam mais especialmente — somos feitos de várias camadas de passado, alguns deles são mais fáceis de detectar, pois estão na superfície, outros nos levam a escavar aquelas raízes mais profundas, onde estão, por exemplo, alguns dos medos relacionados a minha pergunta — que horas fecha?

Estou de volta a um tempo muito distante. Faz muito frio, não há quase ninguém nas ruas. Soltaram o leão. Penso que estaria sozinha no mundo se não fosse aquele trailer vendendo batata frita gosmenta. Me acalmo quando vejo que aquelas luzes atravessam a madrugada fria e de certa forma aquela presença ao alcance dos olhos me abraça. Outras luzes se alongam mais distantes, mas logo depois se apagam. Aquela permanece, e consigo dormir na certeza de que alguma coisa próxima a um aquecimento me acompanha. Nada do que fazemos, dizemos ou perguntamos é à toa ou em vão.

Somos seres feitos de camadas tão múltiplas que tudo remete a tudo. Pode parecer bobagem, mas nossos medos nos acompanham das formas mais variadas e conseguimos encontrar estratégias de sobreviver a eles e com eles para que a gente aprenda a se proteger.

Quando me respondem que um determinado estabelecimento fecha tarde — “estamos aqui até 23 horas” ou “o funcionamento é 24 horas” — é como se novamente a luz daquele trailer se acendesse e, mesmo sem a menor pretensão de sair no frio para comprar batatas gosmentas, fico feliz em saber que não estou só de tudo. Somos também feitos de várias camadas de ilusões.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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