O tédio criativo

O tédio da infância ainda assombra a cronista, que refaz os caminhos da vida percorrendo o que não teve
Ilustração: Carina S. Santos
04/08/2024

Grande parte da minha infância eu vivi no tédio profundo. Meus pais dormiam tardes inteiras nos fins de semana. Os passeios em família se resumiam a uma parte da manhã e eram sempre os mesmos. As férias idem. Não houve uma só em que testamos outros destinos. Nunca houve tentativa de sair de qualquer roteiro para experimentar o novo.

Meu irmão e eu sobrevivemos evitando o naufrágio cada um a seu modo. Ele brincava de mágico. Tinha todos os apetrechos e ficava no quarto fingindo que poderia tirar coelhos das cartolas.

Eu acendia a imaginação e conversava sozinha; na verdade, criava diálogos com personagens de uma novela que eu inventava, fazendo todas as vozes e assumindo diversas personalidades. Eu era muitas.

Assim chegamos (não ilesos) à fase adulta. Eu virei escritora e ele se lançou no mundo, vivendo em vários cantos do planeta.

Ambos optamos pela fuga, cada um a seu modo. Acho que devemos isso ao tédio e àquelas tardes vazias e sem nenhum tipo de empolgação para absolutamente nada além de ir até o mercado e comprar muçarela fresca. Era o ponto alto das tardes do domingo.

Claro que modifiquei esse sentimento em narrativas da infância romantizando situações aborrecidas. Assim é que a memória sobrevive ao caos. A imaginação é a grande tábua de salvação do ser humano.

Consigo perceber que o excesso de imaginação, por outro lado, deu vazão a uma incrível ansiedade quanto ao futuro. São tantos pensamentos por hora que nem sempre controlo e obviamente dou passagem para as trevas. As horas vazias ainda me assombram…

O contrário nem sempre é a melhor fórmula, e encher os dias da infância com atividades também pode não ser ideal. O que me fez falta foi acima de qualquer coisa a falta de animação e empolgação diante de vida. Algo que eu tento compensar enchendo meus pulmões e a minha casa do presente.

A vida é assim: a gente refaz o caminho percorrendo o que não teve a chance de ter…

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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