O que não importa mais

A sabedoria de envelhecer sem dar muita importância ao julgamento alheio a respeito da aparência física
Ilustração: Marcelo Frazão
02/06/2024

Outro dia eu chegava correndo na academia. Não me lembro de ter olhado no espelho antes de sair de casa. Certamente não haveria tempo de me olhar no espelho antes da aula de ginástica. No vestiário, uma moça de seus 17 anos, mais ou menos, mexia o cabelo para um lado e para o outro; fazia acertos ou desacertos milimétricos que não faziam diferença para mim, mas com certeza para ela significavam estar apta ou não para ser vista pelo mundo fora do vestiário.

Tive a reação imediata de me olhar no espelho e percebi que fazia um século que eu não me olhava à procura de aprovações de terceiros. Eu estava feliz por conseguir estar de pé depois de um dia cheio e capaz de treinar para aliviar as dores na perna provenientes da coluna. Pensei: quando isso começou? Quando os outros passaram a não ter mais tanta importância para mim em relação a como me apresento diante deles?

Não consegui estimar uma data. Uma idade. Um ano. Talvez tenha sido um longo e progressivo desenvolvimento rumo ao estágio libertador de não dar a mínima se vão achar meu cabelo inábil ou não. Se minha roupa vai combinar com a estação.

Uma longa estrada que a moça do vestiário iria percorrer — ou não. Vejo muitas pessoas da minha idade darem extrema importância ao olhar dos outros sobre si mesmas. O gatilho para a libertação talvez não venha da idade, mas de algum outro motor que não sei qual.

O espelho do tempo, no entanto, ainda é desafiador para mim, pois, quando vejo fotos minhas do passado, é como se visse um espelho inverso onde eu sou o outro. Desse olhar não escapo, ou seja, o meu próprio julgamento sobre como tenho atravessado os anos às vezes pode ser cruel ao me comparar comigo mesma.

O que tento fazer é superar o olhar do passado sobre mim e filtrar os possíveis tormentos. Em relação aos olhares do mundo, estes eu realmente abandono. Não quero saber se vão julgar minha pouca habilidade em arrumar meu cabelo que acaba sempre preso por pura preguiça de encontrar outra solução. Deixa quieto. Deixa meu cabelo quieto e tudo o mais que o tempo bagunçou. Acho muito chato quando tentam interferir na minha decisão de não me importar com o que dizem sobre a forma como eu me apresento. Não quero dizer com isso que eu levante a bandeira do desleixo, claro que não, mas preciso da liberdade de não me importar com julgamentos de qualquer espécie.

Saí do vestiário e a moça permaneceu, arrumando milimetricamente seus cachos…

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

Rascunho