O apagão iluminado

A queda de energia elétrica transforma-se em oportunidade para inventar novas formas de existir, distante do mundo virtual
Ilustração: Carina S. Santos
07/01/2024

E de repente tudo se fez breu. Um colapso de energia no bairro e a promessa de momentos tensos no ar: como vamos sobreviver sem… internet? Antigamente ficar sem luz era, no máximo, ver as comidas estragarem na geladeira, o que era uma tragédia, sim, mas sobrevivíamos moralmente. Desde quando passamos a viver mais tempo no mundo virtual do que na cozinha, tudo mudou. Ficar sem luz é se sentir desambientado dentro de si mesmo sem rumo nem prognóstico de sobrevida. Lembrando que os celulares nestes momentos-surpresa estão todos quase descarregados e o pouco que sobra da bateria a gente usa com a lanterna para checar no espelho se a gente ainda existe presencialmente ou só on-line mesmo.

Contrariando todas as expectativas, porém, aquela noite de escuridão dentro de casa acabou se transformando em um momento para a gente nunca mais se esquecer — positivamente falando. Recorrendo às velas depois que o resto de bateria dos celulares se foi, fomos para a varanda checar se o mundo já havia acabado também. Todos os prédios da rua sem luz, o que indicava algo sério e duradouro. Chegamos a pensar em dormir ali mesmo, estendendo colchões, para fugir do calorão.

Antes disso, nos sentamos e eis que uma das minhas filhas decide pegar um livro. Não só. Ela começa a ler em voz alta, como se fosse um sarau improvisado. Eu me deitei em um banco, peguei uma coberta leve e, com a outra filha, fiquei ouvindo e imaginando o quanto avançamos naquele exato instante: sem energia elétrica fomos capazes de existir.

Quanta coisa deixamos de fazer “presencialmente” porque estamos muito ocupados olhando a vida dos outros e imaginando o quanto somos menos afortunados, mais gordos ou patéticos em comparação ao resto da humanidade bem-sucedida que mora nas redes sociais. Fiquei feliz em saber que nem tudo o que eu digo para as minhas filhas se perde no ar sem proveito — talvez eu esteja conseguindo mais resultados do que imaginava. Nunca pensei que uma noite de apagão fosse criar o desejo da leitura compartilhada em uma varanda à luz de velas em pleno verão carioca.

A gente sobreviveu várias horas, inventando novas formas de existir. A outra filha deixou até um recado no word do meu computador em um texto breve chamado “Sem luz”. Registrou a memória do que vivemos ali naquela hora tardia para quem sabe um dia. A luz só voltou de madrugada, quando cada uma foi para o seu quarto. Exaustas, mas certas de que existimos, acendendo nossas luzes internas em tempos de apagão.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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