O algodoal imaginário

Uma boa caminhada é a propulsão para transformar ideias em textos, histórias, livros
Ilustração: Eduardo Mussi
05/11/2023

Quando eu morava fora do Brasil, criei uma rotina de caminhada em um local perto de casa para espairecer as ideias. Era uma rua no meio de uma espécie de bosque que dava para o rio, depois da longa travessia. Durante as estações menos frias, o caminho ficava florido de uma penugem branca, uma vegetação que eu desconhecia, mas que chamei naquele instante solitário e poético de algodoal.

Com o tempo e, em outras circunstâncias geográficas de vida, encontrei diversos algodoais imaginários. A rotina da caminhada tornou-se parte fundamental da minha existência, mesmo quando chove, não só para me exercitar fisicamente, como para produzir — eu escrevo andando. Quase nunca — acho que posso afirmar, nunca — chego ao computador sem saber para onde ir. Isso porque mentalmente eu já formulei oitenta por cento de tudo o que eu quero escrever. Descobri recentemente que faço isso, quando resolvi criar uma oficina criativa e iniciei a organização do meu processo criativo.

Cada um tem seu método de trabalho, claro. Há os adeptos dos caderninhos, agendas e adesivos coloridos espalhados pelo computador. Eu não. Faço anotações ao longo das minhas caminhadas que costumam durar uma hora diária. Naquele escritório a céu aberto, decido sobre algumas dúvidas cruciais da existência e ainda escrevo, edito, elaboro, concluo. Não sou infalível e pode acontecer de eu me esquecer de alguma ideia depois, embolada com os milhares de afazeres domésticos. Muitas palavras podem ter se dissipado nos meus algodoais imaginários, mas eu pago este preço do esquecimento, porque só consigo trabalhar assim.

Talvez eu tenha adestrado minha mente para criar enquanto meu corpo físico se movimenta. Todas as poucas vezes em que eu fiquei sentada à espera do lampejo, fracassei. Preciso dos meus passos para que minhas mãos entendam o que a mente criou antes de chegar à tela em branco.

Outro dia durante minha caminhada eu me lembrei deste antigo algodoal que não tinha algodão nenhum obviamente ao redor, mas que no meu imaginário era, sim, um lugar da plantação que eu inventei. Foi lá que eu comecei a escrever. No riscado de um chão que eu percorria diariamente na direção do rio. Tempo de ideias fluentes que deram origem a tudo o que hoje eu produzi.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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