Mobiliar o presente

A necessidade de aprender a ter coragem de encarar e viver o presente sem medo
Ilustração: Eduardo Mussi
02/07/2023

Andei pensando em como o futuro está cheio de sonhos, planos e afetos. É uma casa mobiliada e aparentemente feliz, enquanto, muitas vezes, o presente está vazio e parece um sótão abandonado, com cheiro de passado. Temos a tendência de entulhar no futuro objetos, pessoas, sentimentos, cristais e viagens, simplesmente por nos faltar tempo ou paciência de acomodar agora o que desejamos na casa onde a vida de hoje acontece.

Talvez a gente não precise tanto assim de futuro, na mesma proporção em que não nos lembraremos daquele cômodo onde entulhamos tanta coisa — sempre o que fica para depois ou longe do que a vista alcança é o que a gente esquece e não nos fará falta. Enquanto isso, o presente passa sem os objetos guardados para depois, sem as viagens e os cristais abafados e escondidos, sem os afetos que empurrados para debaixo do tapete como poeira. O presente, já com ranço de passado, o mesmo que acumula quinquilharias, tende a expulsar para os fundos da casa tudo o que ameaça chegar com cheiro de novo.

Estes “fundos” são o quarto de despejo chamado futuro. Precisamos de futuro tanto quanto precisamos do presente? O presente é o coração se expandindo e pulsando, é a chuva inesperada e sem guarda-chuvas quando os pés de sapatilha de pano chegam ensopados em pleno outono; é a visita do amigo na hora do almoço, sem hora marcada, para dividir o peixe e o riso; é a alegria de poder abraçar e beijar queridos sem medo de não ser compreendida; é um brinde no meio da tarde muito antes do happy hour, porque as horas alegres quem faz sou eu. Acho que falta poesia ao presente. O passado é sempre festejado por nostálgicas celebrações. O futuro está sobrecarregado de honrarias e de velharias guardadas — mofaram?

Há que se ter coragem de abrir a porta e dizer ao entregador que traz as novidades do dia: pode deixar aqui mesmo, moço, no meio da sala; o futuro era aquele quartinho lá nos fundos, que agora, derrubada a parede, tem vista para o presente.

Precisamos aprender ter coragem de mobiliarmos o presente sem medo. Talvez seja por este motivo que adiamos a reforma para um depois sem data. Enquanto isso, nos esquecemos de que, no vazio deixado pelo vácuo, também se acumula a poeira do que não se viveu…

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

Rascunho