Escrevam, escrevam, escrevam…

Entre memórias e palavras, a escrita reafirma o poder criativo do humano diante da mecanização crescente do mundo
Ilustração: Eduardo Mussi
02/11/2025

Um movimento lento e silencioso acontece no Brasil e talvez em boa parte do mundo: multiplicam-se as oficinas de escrita e um número cada vez maior de candidatos a escreventes surge por todos os cantos, vindos das mais diversas regiões e classes sociais. O que talvez pouca gente tenha percebido é o quão revolucionário esse movimento pode ser a longo prazo. É consenso dizer que a inteligência artificial pode arruinar o pensamento humano, que irá se deteriorar por falta de uso criativo. O que pode ser feito contra isso?

“Pensamento humano” é um pleonasmo em si, pois só os humanos podem, de fato, “pensar”, já que este gesto requer um cérebro provido de neurônios. O “pensamento” da máquina é outra coisa, que precisa ser nomeada de forma diferente. Logo, o criativo por excelência pertence ao domínio do humano. O que se diz quando se fala que a inteligência artificial está arruinando o pensamento é que existe um batalhão de humanos com preguiça de pensar — e, quando se deixa de pensar, o cérebro se acostuma.

O que tudo isso tem a ver com as oficinas? A boa e velha troca de experiências entre escritores, professores, leitores e futuros humanos escritores pode fazer parte de uma belíssima revolução da criatividade. Muitos procuram os cursos de escrita com o objetivo de contar as suas histórias. É o primeiro passo: sair dos diários ou do silêncio para testar a capacidade de sobrevida da palavra engolida, engavetada ou submersa em sessões de terapia para o texto em si. As histórias de família, as tragédias vividas na sombra dos antepassados ou mesmo as lutas diárias de cada um podem ser matéria-prima para escritos que um dia podem ou não virar livros. Há quem queira escrever só por escrever, há os que querem publicar livros e há os que efetivamente querem se tornar escritores profissionais. Tudo isso é revolucionário, pois é o pensamento se desdobrando em uma das atividades mais complexas do cérebro: narrar.

Pode-se — ou não — usar as ferramentas da inteligência artificial como antigamente se usavam as enciclopédias e ainda se usa a internet. O avanço tecnológico é permanente. São fontes de informação. Certo. Só que a matéria mais profunda das camadas de vida, que está no fundo da criação humana e à qual nenhuma tecnologia tem acesso, é o que nos define acima de tudo. Nada será capaz de sondar os cantos mais sombrios da memória, as perplexidades, as lembranças, os ecos de cada acontecimento dentro de nós — e é a partir daí que muitas histórias nascem. Quanto mais se escreve, mais se tem vontade de desenredar os fios da mente em busca de novos textos (= tecidos) que podem se desdobrar em ficções.

O pensamento, então, se fortalece cada vez mais na construção desses complexos ornamentos textuais e narrativos. E sempre que o pensamento se fortalece, os humanos ficam mais inteligentes e críticos. Além disso, ninguém escreve sem ler. Um texto se liga a outro texto e assim por diante. Estamos nos alfabetizando o tempo todo. Pode parecer ingênuo achar que oficinas literárias são movimentos revolucionários, mas não deixam de ser uma forma aparentemente simples de se opor à mecanização do mundo.

Que mais e mais pessoas queiram escrever suas histórias, vasculhar suas memórias escondidas, abrir suas gavetas e varrer os quintais da infância. Transformar matéria de vida em texto pode ser o começo de uma transformação revolucionária para muita gente — e isso não é pouco.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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