Carta ao futuro

Requintes tão simples do inverno – como cozinhar pinhões – são o que de mais humano o futuro pode reservar
Ilustração: Eduardo Mussi
07/05/2023

Prepare a colheita dos pinhões que vou chegar no inverno. Ou no quase inverno, não sei o dia certo, mas quando as primeiras manhãs começarem a gelar, pode saber que estou por perto. Separe os melhores pinhões, aqueles que se deixarão amolecer e temperar, recuse os demais. Lembre-se de que são várias horas de cozimento para que fiquem bons. Esses requintes tão simples do inverno são o que de mais humano o futuro pode me reservar e mal posso esperar para me ver chegando nesse tempo adiado, mas que hoje me parece um sonho real: meu futuro.

Já vivo um tempo em que posso ver esse horizonte. Antes tudo era proa e mar e céu e vastidão. Eu não conseguia perceber onde estaria um cais para repousar os pés cansados e os braços exaustos de tanto remar. Hoje percebo que este horizonte tem um lindo pôr de sol, é um lugar de vento forte, sei que vou tremer de frio, mas onde existem amigos não importa a inclemência do tempo. Ah, e ainda tem os pinhões cozidos e temperados com sal e pimenta. Onde mais encontrar a colheita farta de um futuro brando?

Por isso, não esqueça de preparar a colheita. Quero chegar com os pinhões já prontos e quentinhos, a minha espera. Em nenhum outro lugar eu teria tanta alegria em festejar o cozimento de pinhões – mesmo que eles existam em outros cantos, eu prefiro os que são cozidos e temperados aí, neste horizonte que me antecipa a chegada. Posso ver meu barco chegando, tocando de leve o casco na pedra do cais, fazendo aquele delicioso barulho de ancoragem em um lugar de amor. Tudo isso porque decidi fugir da solidão neste futuro que eu desenho e quero.

Não esqueça de separar os melhores pinhões. Cozinhar várias horas até que fiquem macios, transformando completamente a natureza destes frutos tão duros. E repente percebo que entre “fruto” e “futuro” há muita semelhança, nada é à toa nem banal e mesmo nas equações linguísticas o acaso não existe.

Que eu possa, enfim, depois de uma viagem tão longa, repousar os pés na borda de um pedaço de chão de frente ao pôr do sol, na certeza de que tudo, mas tudo mesmo, terá valido a pena. Só desejo que meu futuro me espere chegar.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

Rascunho