Amigos de longe

Como é boa a sensação de encontrar alguém que mora longe-longe, mas que se mantém conectado com a nossa forma de ver o mundo
Ilustração: Eduardo Mussi
01/09/2024

Dizem que os amigos são aqueles que estão sempre perto, não importa o que haja são eles que nos abraçam em qualquer circunstância. Mas existe outra qualidade de amigos que não estão perto fisicamente e por isso não podem abraçar. Muitas vezes o fuso horário desnorteia a possibilidade de um oi na hora certa. Os amigos de longe se prestam a outro tipo de abraço.

São eles que nos acolhem fora do eixo onde circulamos no dia a dia. Ter amigos no mundo nos dá uma sensação de que não estamos desamparados. É reconfortante viajar para terras distantes e saber que do outro lado da ponte temos amigos. Dividem os planos de trabalho, as atuações em quadrantes diversos, que nos inspiram a seguir por caminhos impensados.

Como é boa a sensação de encontrar alguém que mora longe-longe, mas que se mantém conectado com a nossa forma de ver o mundo; viver de literatura, cultura e arte coloca rodinhas nas nossas pernas e nos sentimos assim, meio nômades, circulantes por várias paragens onde quer que alguém nos charme convoca nossa voz ou nossa palavra.

Acho que os amigos de longe que a literatura me deu são aqueles que acionam os comandos de não desistência, pois eles também enfrentam adversidades e ainda insistem e querem que a gente insista para continuarmos existindo. Não é lindo quando alguém quer que nosso trabalho persista?

Quando fico muito tempo sem viajar, começo a percorrer mentalmente os mapas das amizades de longe para criar novas possibilidades de projetos. E não é apenas pelo trabalho em si, mas pelos vínculos; tomar um vinho, sentar na praça, andar por ruas e parques a bordo dessas amizades que conhecem seus lugares de vida e nos convidam a passeios são o melhor que a vida literária andante nos oferece.

Percebo que os lugares de que mais gosto não estão ligados às características da cidade em si, mas aos amigos que as povoam. Quando eles nos abraçam, sentimos que gostamos da paisagem; mas é a paisagem humana que nos conquista primeiro.

Em um mundo de tanto ódio e hostilidade, preservar afetos e multiplicá-los é um grande feito. Difícil descrever o sentimento que habita essas amizades, mas creio que possa ser uma espécie de amor compartilhado por pessoas que acreditam na potência transformadora que é a palavra literária, e a diferença que podemos fazer no mundo quando a gente une nossos esforços e nossa não-desistência.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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