A rua do tempo

Uma volta inesperada à rua da infância reacende cheiros, sabores e imagens que resistem ao tempo e permanecem vivos na memória
Ilustração: Bianca Rivetti Burattini
07/12/2025

Esta semana foi surpreendida quando um trabalho me levou de volta à rua da infância. Eu não sabia que o local era exatamente por ali; imaginei que fosse um pouco antes de chegar ao coração do tempo, então não me preparei psicologicamente para entrar na cápsula. Fazia alguns séculos que eu não embarcava para aqueles lados. Incrível como o passado tem cheiro, consistência. É tridimensional esta viagem. O primeiro sentido a ser despertado foi o olfato.

O trajeto que eu fazia naquela tarde passava pela rua ao lado do Jardim Botânico — o espaço gigantesco que me serviu de parque. E, de repente, eu e meu irmão estamos novamente lá dentro, nas manhãs de sol, antes da escola. Vivemos boa parte da infância ali, pois era muito perto da nossa casa, e minha mãe conseguia nos levar a pé. A gente corria por aquelas árvores, encontrava os filhos das vizinhas; era uma espécie de praia sem mar.

Toda aquela área está dentro da nave que me leva ao passado, não só o Jardim Botânico em si. De lá, a rua se estende e se multiplica nas ruas menores que sobem para o Horto e chegam até a uma das casas grandes. Uma delas é a da Maria de Fátima. Ela me chamava para passar as tardes com ela aos sábados. Ela tinha o maior quintal do mundo em uma casa de dois andares, o que para mim era uma mansão. As personagens do passado ainda habitam os mesmos lugares no espaço mágico da memória automática — basta acionar a bobina e o filme acontece. Pronto, estamos vivendo o tempo de antes novamente…

A minha casa era um prédio de três andares que ficava quase no fim da rua por onde o carro do trabalho de agora me leva. Não chego até lá fisicamente, mas é claro que a lembrança se alonga e chega antes de mim. Vai até à padaria que ficava do lado do meu prédio, onde tinha aquela muçarela deliciosa — será que a padaria ainda existe? Claro! Tudo sempre ainda existe. Quem decide é a memória. Eu quero sentir o gosto do queijo recém-cortado, dentro do pão quentinho. O paladar é o sentido que acende o gosto do passado agora.

Foram tantos os sabores e as imagens do tempo que tive dificuldade de me concentrar no roteiro do trabalho que a tarde me pedia. Tive de me despedir para não ficar presa dentro daquele filme que ainda se desdobrava em várias outras cenas: a casa da Kátia, subindo a rua do lado; o colégio onde fiz o maternal; a mercearia da esquina; a loja de ferragens que também era um pouco papelaria… Cada espaço daqueles tinha os personagens todos vivos e atuantes, eu inclusive. Como não se deixar levar por aquele mundo?

De repente, a memória do olhar traz de volta a minha imagem debruçada na janela do pequeno apartamento do prédio bege à espera de o ônibus da minha avó chegar. Ela vem de Minas e carrega sua mala cheia de pequenos mimos, como uma caixa de bombons para mim. Esta imagem eu não quero que se desfaça.

Vou para o meu trabalho com a cena parada, estática.

O passado é uma viagem cheia de sentidos.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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