A ficção não sabe de mim

O que se lê na ficção deve ser absorvido como ficção, esquecendo-se a figura biográfica para o bem do crescimento crítico do leitor
Ilustração: Eduardo Mussi
03/09/2023

Fiz a bobagem de mandar uns livros meus para uma tia que escreve e adora ler — os clássicos. Tem receio de se aproximar dos contemporâneos. Acho que ficou meio parada no século 19 por pura devoção. Quis parecer simpática, grande erro. Devo sempre me lembrar de que os familiares precisam se manter afastados da nossa produção para o bem da convivência fraterna. Eu deveria deixá-la entre os clássicos, por que minha insistência em fazer com que ela saísse do seu conforto?

Depois de algum tempo, quando julguei que ela não tinha se atrevido a ler nada, eis que a própria me escreve com a “análise crítica” de que meu melhor livro era aquele no qual ela havia “me encontrado”. Ou seja:  leu a ficção buscando verdades escondidas aqui e ali como um caça-palavras de alma. Fiquei com muita raiva, especialmente de mim mesma por acreditar que familiares podem ser bons leitores de nossa obra — não podem.

Com raras ou inexistentes exceções, parentes são aqueles leitores inocentes que leem os livros de um autor conhecido (parente, vizinho, amigo) buscando pistas para o reconhecimento. Nunca me esqueço de uma vizinha que cismou descobrir a “identidade secreta” de uma das personagens do meu primeiro romance, que era vizinha de uma das protagonistas.

Creio que haja muitas oficinas de escrita — todo mundo nasceu com o chamado da literatura — mas poucas oficinas de leitura. Os leitores inocentes, os que iniciam a jornada da leitura, não são apenas os jovens com quem conversamos quando vamos como pop stars nas escolas; são aqueles que insistem em procurar os autores mortos nas obras que escreveram. O que se lê na ficção deve ser lido, absorvido e analisado como ficção, esquecendo-se a figura biográfica para o bem do crescimento crítico do leitor. Isso é difícil de ser ensinado.

Por isso é tão importante esse contato dos autores com os alunos. Um trabalho lindo que merece ser estimulado pelas escolas e pelas editoras. É nesse contato próximo que nasce, informalmente, uma oficina afetiva de leitura. Sempre que me perguntam sobre o que de mim existe em determinada obra, tento mostrar o quão desimportante é a sondagem e o quanto seria mais interessante fazer outras aproximações, como o intertexto, por exemplo, ou seja, buscar outras obras com as quais aquele livro específico dialoga. Sei que é difícil, mas é necessário. Estimular a associação direta entre vida e obra é um empobrecimento da leitura.

Como dizer isso àquela minha tia? Não direi. Ela vai naturalmente encontrar seu caminho ou então permanecer socada no século 19. Da minha parte não mostro mais meus livros. Tenho que ter em mente a certeza de que parentes não podem ser nossos leitores — para o bem da convivência fraterna.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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