A coleção detestada

A agonia de colecionar selos e a necessidade de autonomia transformam-se em um caminho para entender o pai
Ilustração: Thiago Lucas
03/12/2023

Talvez tenham sido alguns meses de tentativa, não me lembro com acerto. A memória que me traz a detestada coleção de selos de volta não é tão eficiente a ponto de me oferecer a precisão temporal. A tentativa em questão se refere à insistência do meu pai para que eu aderisse ao “prazer” de colecionar selos, os mais diversos, que ele gentilmente me sugeria guardar em um álbum, cuidadosamente protegido por uma folha bem fina. Eu guardava, colecionava, obedecia. Só não conseguia obedecer ao comando de gostar.

Depois que ele me dava os selos novos, envolvido na euforia dos achados, eu tentava capturar aquela intensidade sem sucesso. De onde ele tirava tanta alegria por pequenos pedaços de papel que para mim não significavam nada? Eu tentava disfarçar, às vezes conseguia, ou pensava que conseguia. De vez em quando ele me pedia para ver a coleção, talvez para checar se eu estava cuidando bem do que para meu pai era uma preciosidade. Eu mostrava a coleção detestada como se mostra uma tarefa de escola que é preciso fazer para passar de ano. No caso, eu queria agradar meu pai; passar no seu critério de amor.

Em pouco tempo — não sei quanto tempo — a farsa foi descoberta. Ele veio com a sentença fatal:

— Claudia, você não gosta de colecionar selos, não é?

Mais uma vez tentei disfarçar, porque me doeu ser descoberta daquela forma. Pensei que tinha conseguido pelo menos enganar no começo. Mas meus olhos nunca brilharam para os selos como para minha outra coleção, esta só minha, a de papéis de carta. Eu tinha adoração por tudo o que envolvia o universo das cartas — os envelopes, os papéis decorados, as palavras que iam e vinham nas demoradas correspondências que a internet enterrou. Só que os selos… Eu até poderia gostar de uns mais coloridos, mas não a ponto de colecionar com devoção. Não significavam nada para mim a não ser algo semelhante a uma ficha de orelhão — aqueles seres gigantes que funcionavam como telefone antes do celular e moravam nas ruas.

Eu menti dizendo que adorava a coleção de selos. Não tive coragem de destruir o sonho do meu pai de me ver transformada em uma colecionadora oficial e apaixonada. Não sei por quanto tempo mais aquela agonia se arrastou até ele desistir. Soquei o álbum em algum canto do armário esperando que meu pai novamente clamasse por ele. Quando percebi que ele havia se esquecido, relaxei. Me lembro do dia em que joguei tudo fora. Que alívio.

Talvez meu pai nunca tenha compreendido meu ódio secreto à coleção de selos, já que era conhecida minha adoração ao mundo das cartas. Só que eram coisas muito diversas. A solenidade que envolvia os selos, a necessidade de conhecimento de suas origens e valores, tudo aquilo me irritava. Além disso, eu não queria ser obrigada a fazer uma coleção; queria escolher os objetos para guardar e não que outra pessoa fizesse por mim. Ele demorou a entender.

Existem várias formas de as pessoas se conhecerem. Aquele desentendimento foi uma delas. Muitas vezes, a gente aprende a entender o outro no negativo.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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