Como mandrágoras presas à solidão

“O mocho cego”, do iraniano Sadeq Hedayat, considerada obscena no regime de Reza Pahlavi, é uma obra obscura e singular
Ilustração: João Verderame
10/05/2023

Considerado o pai da literatura moderna do Irão, a obra mais conhecida de Sadeq Hedayat é O mocho cego, uma novela curta publicada originalmente em 1937, que foi proibida na Pérsia durante o regime de Reza Pahlavi. Agora publicada pela primeira vez em português, numa tradução directa do persa (edição E-Primatur, 2020; traduzida no Brasil como A coruja cega e outras histórias, editora Almedina). Ainda hoje, O mocho cego continua a ser visto como um livro obsceno pelos extremistas islâmicos. Sadeq Hedayat, nascido em Teerão em 1903, viajou na juventude pela Europa, estudou na Bélgica e em França e regressou a casa durante o poder de Reza Pahlavi. À semelhança de A paixão do jovem Werther, de Goethe, diz-se que a leitura do seu livro empurra alguns leitores para o suicídio. Talvez a própria biografia do autor tenha ajudado a construir essa fantasia, pois quando regressou a Paris, em 1951, decidiu pôr fim à sua vida.

Elogiado por Henry Miller e André Breton, Sadeq Hedayat é muitas vezes comparado a Poe e a Kafka, autores que o escritor iraniano assumidamente admirava, embora não seja uma comparação consensual. Há quem o considere mais próximo da misantropia de Bukowski, por exemplo. Talvez o que mais aconteça ao ler O mocho cego seja a experiência de entrar numa novela obscura e singular, que vale por si própria, sem necessidade de comparações. E talvez esse sentimento venha da vontade declarada do autor de inclinar as linhas para a escuridão:

Escrevo apenas para a minha sombra, que está projectada na parede, em frente da luz. Devo apresentar-me a ela.

O protagonista desta novela vê os outros como ignóbeis e confessa um “abismo assustador entre mim e os outros”, um sentimento de solidão e de incomunicabilidade com o mundo que o asfixia. Revela-o desde as primeiras linhas da novela:

Na vida há certas feridas que, como um cancro, corroem a alma, diminuindo-a e levando-a à solidão.

Das suas palavras chega-nos um frio subterrâneo, o cheiro a morte em vida, o pesadelo.

Com o objectivo de a aquecer com o calor do meu corpo, de lhe dar o meu calor e receber o frio mortal do corpo dela, esperando assim poder talvez soprar a minha alma no seu corpo, despi-me, meti-me na cama e deitei-me ao seu lado. Ficámos presos como mandrágoras, macho e fêmea.

Uma das características mais peculiares da mandrágora é o facto de possuir uma raiz principal bifurcada, que se assemelha à forma humana. A raiz que se assemelha a outra coisa, a tal sombra que é o principal destinatário do autor. As palavras de Hedayat parecem tudo menos obscenas no mundo ocidental; são antes audazes, bizarras, valiosas e enredam-se no espírito como raízes de mandrágoras na nossa solidão.

Cláudia Lucas Chéu

Nasceu em Lisboa (Portugal), em 1978. É escritora, poeta, dramaturga e argumentista. Tem mais de uma dezena de livros publicados em Portugal (poesia, dramaturgia, romance e contos). No Brasil, publicou os livros de poesia Confissão (Reformatório) e Ratazanas (Demônio Negro). Escreve para diversas publicações (jornal Público, Mensagem de Lisboa, revista Máxima, entre outras). Confissão foi semifinalista do Prêmio Oceanos em 2021.

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