A Flip de cada um

Pelas ruas de pedras, o mundo literário brasileiro se movimenta, serpenteia entre a vaidade e a diversidade de vozes, de egos e de histórias
As ruas de Paraty são tomadas por milhares de leitores durante a Flip
01/12/2023

Esta é uma crônica suicida porque tem um título aparentemente compreensivo, abrangente, mas o texto será parcial e incompleto no que tange à caracterização dos tipos humanos que se derramam pelas ruas, casas temáticas, botecos, festas e eventos oficiais da festa literária mais badalada do país.

Em minha defesa, alerto que não se trata de algo sistemático, não tem metodologia, só mesmo a vara de pescar da cronista, atenta a boas histórias com ênfase em dois sujeitos, editoras e escritoras e escritores.

As casas de editoras e coletivos literários colorem de bibliodiversidade a festa e têm naturezas distintas: há casas de caráter institucional forte (que têm dinheiro ou patrocinadores) e que remuneram as pessoas convidadas ou custeiam de alguma forma sua participação; tem as “casas conceituais” que reúnem casas editoriais e editores descolados, muito preocupados com o objeto-livro e com o discurso de busca de leitores; tem um pessoal que vai chegando de mansinho e ocupando espaços, chamado de “identitário” pelo pessoal que toma uísque e os vinhos mais caros nos restaurantes faraônicos enquanto dissertam sobre como Nova York se tornou uma cidade cara e insuportável, considerando o preço da dose de whisky por lá. Discretos, os tubarões segredam que é necessário cuidado para que os peixinhos não cresçam demais, pois são perigosos, não demora e querem subverter coisas que devem permanecer como são. Em toda casa tem um pessoal empombado do campo da editoração que se sente injustiçado pelo lado hegemônico do sistema e se acha o elo mais fraco da corrente porque, de fato, ama o livro e só quer editar, não se preocupa com dinheiro, essa coisa menor.

Escritor e escritora tem de todo tipo no ecossistema literário: tem os que debutam pelos espaços nobres, os oficiais e as festas-vip-oficiosas; tem os ícones endeusados que andam pelas ruas e são elevados (principalmente pela imprensa) à categoria de “mortal que circula pelas ruas”; tem escritor que apregoa a importância da própria obra que se resume à organização de um livro e dois ou três textos publicados em coletâneas; tem o pessoal da literatura que cura, que abraça… tem outra moçada que desconfia dessas (e de outras) funções e objetivos atribuídos à produção literária, principalmente quando escrita por sujeitos dissidentes.

Tem as modas de cada ano, evocar Exu está na crista da onda e Paraty não podia ficar de fora, com tantas correntes enferrujadas demarcando territórios, encruzilhadas festivas e eguns perdidos nos prédios coloniais assombrados pela dor e pelo sangue de seres humanos pretos explorados até à morte.

Me chamaram para falar num bar de esquina, numa encruzilhada, numa casa que como todas as outras construídas por gente escravizada, tem carne humana moída na edificação do alicerce, das paredes e do telhado. Durante os dias que antecederam o encontro, pensava: será que o padê foi entregue? Eu que sou compreendida, dei o de comer em casa e, ali, na encruza, na porta do estabelecimento, dei o de beber a quem tinha sede. E tudo correu bem: a cabeça coberta, o riso solto e a palavra doce; tecnologias ancestrais de produção de infinitos.

Cidinha da Silva

É escritora e doutora em Difusão do Conhecimento. Publicou 21 livros, dentre eles, os premiados Um Exu em Nova York e O mar de Manu.

Rascunho