Sapos

A virada de ano-novo jogando crapô, os sapos engolidos vida afora e uma reflexão sobre as aberrações das músicas infantis
Ilustração: Eduardo Mussi
04/01/2024

Entramos em 2024 alheios ao mundo. Os fogos, tímidos, não se deixaram ver da janela. A música estava distante e abafada. Não tínhamos convidados. Jantamos cedo, como sempre. Sem disposição ou vontade de ir à rua, usamos a cachorra, que dormia, como desculpa. “Tadinha, tem o barulho dos fogos.” Não teve.

Entramos 2024 jogando crapô, um dos muitos reminiscentes da minha infância que passo à geração seguinte. Crapô vem de crapaud, sapo em francês. As cartas pulam de um lado para o outro, daí o nome. Acho que crapaud-crapô foi a primeira palavra que aprendi em francês na vida. Minha mãe adorava o jogo e, por falta de adversário melhor, me ensinou quando eu ainda era bem nova, não lembro a idade. O jogo ficou.

Mais jovem, eu colecionava sapos de pelúcia. Tudo começou com uma brincadeira de uma amiga que, ao me presentear o primogênito da coleção, disse “já que você engole tanto sapo na vida, achei que devia ter um na estante também”. Ela tinha razão. Em um momento de revolta contra os que entalam na garganta e apelando para os deuses da semiótica, joguei fora todos os outros. O livramento simbólico não funcionou.

Se tem uma letra que nunca me desceu é a do sapo cururu. Se ele canta é porque tem frio? Coitado do sapo, gente. A mulher do sapo está lá dentro onde, se ele está na beira do rio? Morreu afogada agora que não é mais filhote aquático? Sapo faz renda?

As coisas que a gente ensina para as crianças, meu deus.

Dona Chica admira-se mas não faz nada contra a crueldade de se atirar um pau em um gato. Quem não marchar direito vai preso em um lugar que pega fogo e que salva a bandeira, não as pessoas. A Cuca vem pegar quem não dorme sozinho em casa, já que pai e mãe estão ausentes. O boi da cara preta pega criança que tem medo de careta. A barata mentirosa só tem uma saia de filó. O pirulito bate bate.

E depois a gente quer que a criança entenda o mundo.

Um dia alguém há de me explicar que diabos quer dizer “Borboletinha tá na cozinha fazendo chocolate para a madrinha Poti-poti. Perna de pau, olho de vidro e nariz de pica-pau pau-pau”. Quem tem perna de pau, olho de vidro e nariz de pica-pau? A borboleta ou a madrinha? O que é um nariz de pica-pau? Borboletas cozinham?

Ainda no registro da infância, lembro de um dia em que apareceu um sapo no banheiro de onde eu estava. Éramos nós dois ali, cara a cara, sem escape, o sapo e eu. Não era um sapo. Era do meu tamanho. Tamanho de tiranossauro rex, forma de sapo. Eu não devia ter mais do que 7, 8 anos e entrei em pânico. Para minha sorte, o sapo também e foi embora sem que qualquer ação minha fosse necessária.

Nesse breve recesso natalino, Nina Simone conheceu um sapo. A primeira reação foi bem similar à minha no banheiro: ficar congelada e sem reação. Ao contrário de mim, entretanto, Nina é corajosa e latiu. Latiu tudo o que estava entalado nesses seus dois anos de vida. Latiu desopilando o abandono de sua primeira infância. Latiu devolvendo o barulho irritante dos carros. Latiu reclamando com os céus da chuva que tomou e não gostou. Latiu tudo aquilo que queria ter dito àquela poodle com cheiro de perfume. Latiu o que pensa da situação em Gaza. Latiu também por mim, por todas as vezes em que não consegui latir.

Cansadas mas de alma lavada, voltamos para casa e jogamos crapô até que 2023 fosse só lembrança.

Ela ganhou.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho