À moda de Gentileschi

O gosto por anos bissextos e por uma boa vingança metafórica, sem esquecer de cortar cabeças, passeios no parque, plantar árvores
Ilustração: Carina S. Santos
29/02/2024

Adoro todos os 29 de fevereiro. Ano bissexto tem um quê de criança com nome composto: a mãe só usa o nome completo na hora da bronca.

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Na saudosa época do Orkut, eu tinha um fake que fazia aniversário dia 29 de fevereiro. Tinha, claro, nome composto. Judite Beatriz. A foto de perfil era Judite decapitando Holofernes, da Artemisia Gentileschi.

A cena é tema de outros quadros importantes. Dentre eles, um do Caravaggio que eu, cá entre nós, não acho tão bom quanto esse.

Outra versão que gosto muito é a do Pedro Américo, que mostra uma Judite maravilhosa e plena. A seus pés, a espada ensanguentada e a cabeça decepada de Holofernes.

Pode até ser o sempre bem-vindo dia extra, mas o fato é que tenho andado em um otimismo desconcertante. É que estou conseguindo cortar as cabeças que preciso e plantar as árvores que farão sombra para o meu filho.

Nem preciso dizer que Judite Beatriz era um perfil feminista raiz, né? Ou seja, era muito fácil desmascarar esse fake.

Hoje em dia os fakes são “josé1234”, “vai1500brasil”, etc. É uma arte morta. A ficção poética foi substituída pela burra concretude do bot.

Já eu, desse lado aqui da velhice, ando cada vez mais ficcional. Faço ilustrações para textos que ainda não foram escritos. Fui aceita em um congresso com o resumo de um artigo que ainda não existe. Crio a capa para o livro que ainda não terminei. Essas coisas.

São metades de mim que vão indo, indo, até encontrar os outros pedaços e, então, quem sabe, atribuir algum sentido à vida.

Ando com os pés para ver se a cabeça acompanha. Nina Simone adora porque isso significa mais caminhadas. Mesmo que, de vez em quando, seja eu a latir.

No quadro da Artemisia Gentileschi, vemos Judite com uma espada, cortando fora a cabeça de Holofernes. Uma outra mulher, sua criada, ajuda Judite, segurando o homem, deitado em sua cama.

A biografia da artista nos dá a compreensão de que se trata de uma alegoria pessoal, uma vingança metafórica. Metafórica não apenas pelo uso da personagem bíblica, mas porque a artista não foi lá, de fato, decapitar seus agressores. Deveria, mas não foi.

Além de anos bissextos, outras coisas de que gosto muito são uma boa vingança metafórica e ressignificação.

Costumam, à moda de Gentileschi, andar juntas.

Cortar cabeças, latir, plantar árvores, passeios no parque e bolinhas, obviamente.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

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