O anti-Macca

Um animadíssimo show de John Lennon na Rocinha, em companhia de Yoko Ono, Chico Buarque e outros músicos
Ilustração: Tereza Yamashita
13/12/2023

John Lennon e Yoko Ono aterrissaram no aeroporto Tom Jobim no início de dezembro de 2023. Ambos vinham de uma série de apresentações pacifistas em Rafah, próximo à Faixa de Gaza. Do Rio de Janeiro, seguiriam até a Kiev, onde se encerraria a turnê Give diversity a chance.

Chico Buarque, a direção completa do MST, e líderes palestinos já estavam à beira da pista para receber o beatle. No começo da noite, a Plastic Ono Band se dirigiu à favela da Rocinha.

Houve um atraso de quase uma hora para o início dos trabalhos. Lennon, em tratamento pela abstinência de heroína, precisou passar por uma sessão de meditação antes de subir ao palco. A ansiedade da audiência era enorme, mas foi recompensada com John abrindo o show com uma canção inédita: Imagine Trump dead — um libelo antifascista, com letra irônica e ferina, que levou a plateia ao delírio.

Após dez minutos de berros agudos e outras manifestações vocais de Yoko, Lennon — acompanhado apenas de violão acústico, baixo e bateria — entoou algumas das mais engajadas dos Fab 4: Revolution, All you need is love, Give peace a chance e Taxman. A Comunidade veio abaixo, ouviram-se tiros e outras explosões até na distante Copacabana. Concomitantemente, uma enorme boneca de Taylor Swift foi destruída pelo povão numa atitude que lembrou a malhação do Judas em cidades interioranas.

A comoção só não foi maior porque adentrou na ribalta Mano Brown. Lennon o acompanhou na guitarra em Diário de um detento e mais alguns raps de denúncia à violência policial nas periferias de São Paulo.

Os momentos finais foram preenchidos por John e Yoko interagindo com povos originários. Houve uma grande recriação do quarup, com arranjos musicais de Marlui Miranda. Ao mesmo tempo em que acontecia o ritual indígena, Yoko promovia uma performance nos telões mostrando a penúria dos aborígenes amazonenses nos dias de hoje. John, pintado com as cores ianomâmi, fez uma reinterpretação de Help, em língua nheengatu.

No bis de Revolution, representantes de 47 entidades LGBTQ+ e grupos antirracistas fizeram coro com a banda. Foi o momento mais tocante da noite. Apesar do lamentável linchamento da equipe de jornalismo da Jovem Pan News que tentava captar, sem autorização, o momento.

Logo após o entrevero, houve ainda um arrastão. Enquanto os assaltantes depenavam muitos dos fãs, Lennon ironizava de cima do palco: “Os que estão nos lugares mais baratos batam palmas. O restante basta entregar os Iphone 15!”.

Quando a Plastic Ono Band deixou o palco, foi anunciado que a renda do concerto seria doada ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto.

Momentos depois, o beatle deixava Yoko na casa de Gilberto Gil e seguia, na companhia de Zeca Pagodinho e Moacyr Luz, a um botequim na Tijuca. Ali encontraram Guinga, Arrigo Barnabé, Fausto Fawcett e ficaram até cinco da manhã numa jam que misturou de Noel Rosa a Chico Science, passando ainda por Elvis e vanguarda paulistana.

Horas antes, no Allianz Parque, Paul McCartney encerrava o show Got back cantando Yesterday.

Carlos Castelo

É jornalista e escrevinhador. Cronista do Estadão, O Dia, e sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo. É autor de 18 livros.

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