Crônica de um shopaholic

A alegria inesgotável de comprar e viajar por meio de dicas imperdíveis do celular e uma desagradável surpresa
Ilustração: Thiago Lucas
10/01/2024

Sua vida era bem comum. Até o dia em que comprou, em 12 vezes no cartão, aquele celular. Ao sair da loja, já veio o pensamento de que era preciso revesti-lo com a película protetora e escolher uma capinha esperta. Lá se foi ao quiosque de utensílios e adquiriu, além dos dois itens, mais uma caixa de som sem fio.

Na manhã seguinte, ficou ouvindo música na caixa e navegando pelo smartphone. Poucos minutos depois, surgiu a mensagem: lentes e armações italianas para óculos com até 30% de desconto.

Adiantava ter um celular, tão especial, e não conseguir enxergar a tela com perfeição? Encomendou, na hora, os óculos importados.

Quando os buscou no estabelecimento, no ato, sentiu a visão muito mais aguçada. Havia pequenos anúncios no navegador do aparelho que só agora conseguia notar. Um deles, inclusive, era imperdível. Naquele mesmo shopping center, acontecia uma queima de calçados. E a tão sonhada bota de trekking estava por um preço camaradíssimo.

Não deu outra. Rumou à sapataria e já saiu com o calçado nos pés. “Como é bom ter um companheiro digital que nos avisa sobre as oportunidades imperdíveis”, pensava enquanto mirava a pisada reluzente.

Chamou um carro de aplicativo pelo celular. Durante o trajeto, veio mais uma reflexão. Era proprietário de um smartphone premium, enxergava de modo cristalino, tinha um par de botas robustas. No entanto, adiantava tudo aquilo se não fosse fazer um trekking?

Do banco de trás do automóvel, logo pediu ao Google opções de viagens. No elevador do condomínio, fechou um pacote completo para o Pantanal, em uma pousada indescritível.

E que viagem foi aquela! Que fotos espetaculares clicou usando a câmera, equipada com zoom, do telefone! O que dizer da noite em que os porcos-do-mato atacaram o grupo de turistas? Só o seu aparelho foi capaz de registrar, em vídeo, com tão baixa luminosidade, o acontecimento.

Sem contar que houve a necessidade de comprar no hotel roupas apropriadas para caminhar pelas trilhas pantaneiras. O cartão incorporado ao device, é claro, salvou a lavoura.

O voo de balão e o aluguel do jipe Land Rover foram a mesma coisa. Tudo quitado, à vista, pelo novo companheiro de aventuras.

Uma semana depois, retornou ao apartamento. Ao comparar as despesas do cartão com o que tinha no banco, quase caiu de costas. Como podia ter torrado tanto dinheiro em tão pouco tempo? Era preciso pedir ajuda urgente a quem sempre estava ao seu lado.

“Estou endividado, o que faço?”, perguntou ao app de inteligência artificial do celular.

A resposta veio instantaneamente, através de uma voz anasalada e metálica: “Enquanto você tinha capital, eu tinha sugestões de compras para dar. Agora, que não possui nada, não tenho mais sugestões”.

Sobressaltado, o homem deu um soco no meio da tela do ex-amigo. Antes de ela rachar, entrou uma mensagem: o telefone e o e-mail do Serasa.

Carlos Castelo

É jornalista e escrevinhador. Cronista do Estadão, O Dia, e sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo. É autor de 18 livros.

Rascunho