Um flâneur no inferno

O que "Um diário do ano da peste", de Daniel Defoe, publicado em 1772, pode nos dizer a respeito do Brasil atual
Ilustração: Matheus Vigliar
01/08/2020

Escrito como reportagem histórica, décadas depois dos fatos, Um diário do ano da peste, de Daniel Defoe (3ª edição, Artes e Ofícios, 2014, tradução Eduardo San Martin), foi publicado em 1772 em uma estratégia publicitária. O material é apresentado com autoria oculta, produzido por um cidadão londrino que viveu à época dos fatos e que nunca antes fora publicado. A peste de que trata o livro é a bubônica, de 1665, que transformou Londres em um pequeno inferno, com seres deformados e mortos em todos os cantos. Trazida nos porões dos navios pelos ratos, a doença reconfigura a organização da cidade, que sofre um esvaziamento, aguçando as divisões sociais.

Não há no livro propriamente um enredo, embora as narrativas se organizem em dois núcleos. A viagem cotidiana pela cidade contaminada, feita pelo narrador, e a história de um grupo de trabalhadores que tenta deixar Londres. Entre dados estatísticos de mortos, descrição da doença, métodos de ação sanitária e policial, elogios ao prefeito, cenas dramáticas de sofrimento e relatos do descuido da população, o livro documenta, a partir de relatos, não raro exagerados, este momento histórico que ainda causava medo na população. O tom que hoje chamaríamos de sensacionalista domina o livro, e, para que haja um maior impacto, no seu lançamento, ele simula uma veracidade documental. Seria um diário em primeira pessoa deixado por um sobrevivente da epidemia. O não-ficcional fazia parte de uma estratégia de chegar a um público maior, mais crédulo quando diante de obras pretensamente reais. O ficcionista, assim, no primeiro momento, se vale da invenção para forjar um caráter documental, anulando-se como autor. Ou seja, o ficcional é constituído nos paratextos, no envelopamento narrativo da obra que se apresenta como testemunhal. Esta novidade de estrutura dá a esta quase-ficção uma natureza moderna, de busca do leitor desconfiado em relação à literatura e ávido por emoções tidas como autênticas, porque vividas em proximidade com um cidadão que tomou nota do que viu. O subtítulo extenso é quase um abstrat da obra: Observações e recordações dos acontecimentos mais extraordinários, públicos ou privados, ocorridos em Londres durante a última grande epidemia. Ou seja, o livro cumpre uma das funções literárias que é a de transmitir emoção estética a partir da simulação de episódios, que aqui atinge a própria identificação autoral.

O autor ficcional do diário tem uma classe bem definida. É um comerciante abastado que, por tédio e por esporte, não fez como a maioria dos companheiros de seu grupo, que, ao primeiro sinal dos riscos da doença, deixou a cidade e foi em busca dos ares puros do campo, em suas propriedades de campo: “Enquanto a população fugia da city, descobri que a corte mudara mais cedo”. Como um trânsfuga, ele olha a cidade deixada para trás pelos seus, podendo passar o período da doença como um flâneur no inferno. Há um diletantismo noir nesta sua atitude que também é um componente estético.

Este eu burguês percorre assim a cidade e a revela dominada pelos pobres, pelos criados abandonados pelos ricos, pelas famílias que ocupavam regiões mais populosas da periferia, todos nas mãos do charlatanismo, tanto científico quanto místico. “O povo andava feito louco atrás de curandeiros, charlatões e de toda velha benzedeira em busca de remédio e tratamentos […], atrás de remédios geralmente anunciados em floreios como este: ‘pílulas preventivas, infalíveis contra a peste’, ‘elixir soberano contra a corrupção do ar’” — o que poderíamos tomar hoje como versões desesperadas da crença em remédios como a cloroquina. Foi um momento de desafio para a medicina, com seu receituário contraditório, em que médicos que prescreviam e usavam certos métodos ou produtos eram também acometidos pela peste.

Há todo um código de habitação da cidade, na maioria das vezes desrespeitado, para evitar a sua propagação. O principal deles é que as famílias contaminadas são mantidas isoladas nas casas, para que não espalhem a doença. Para isso, um aparato policial é posto em ação e mesmo homens de bem da sociedade são convocados para fiscalizar esta medida. O próprio narrador é um deles que, depois de saciar o seu desejo de colher episódios, contrata um pobre para ocupar a função perigosa imposta pela prefeitura.

Para não ter a casa vigiada, as pessoas fingem-se saudáveis, até ficar impossível esconder as transformações do corpo adoecido, e aí são trancafiadas para morrerem quanto antes em isolamento doméstico.

Este cenário dantesco é descrito como fruto da corrupção moral, daí o tom bíblico da vingança divina de algumas passagens da narrativa. O pecado é que levou àquele estado de coisas, sendo a peste uma mão de Deus para punir a nova Sodoma. Embora o narrador apresente estas teses, ele culpa também a população que não se preveniu e continuou contaminando outros cidadãos, em uma espiral infinita. Famílias mais abastadas que não saíram a tempo teriam sido contaminadas pelos seus criados, pois “é preciso reconhecer que, embora a peste atingisse os mais pobres, também foram os pobres que mais destemidamente se expuseram a ela, dirigindo-se aos seus empregos com um tipo de coragem brutal”. Houve fechamento de comércio e de fábricas, o que resultou na “dispensa e demissão de um número incontável de diaristas e operários de todos os tipos”. Esta população, a mais sacrificada, acabou presa à sua pobreza e morrendo em quantidades absurdas (ao todo, foram 75 mil mortos), ao ponto de serem jogadas em valas comuns e obrigando as autoridades a abrir novos cemitérios.

A população que não tinha posses para deixar Londres, ou que foi negligente quando podia fazer isso, restou na cidade. O narrador conta a tentativa de fuga de três irmãos trabalhadores, um velho soldado, um padeiro e um marinheiro aleijado, que com um pouco de dinheiro e provisão tentaram ir para outras vilas, mas eram proibidos de entrar nelas.

Revelando-se politicamente, Defoe, oculto neste narrador anônimo, conclui que o acerto do prefeito, que com sua equipe ficou na cidade, foi trancafiar a população (principalmente a mais pobre) nas suas casas e na cidade, para evitar a propagação da peste. Houve também controle para que não ocorressem saques nas casas e lojas fechadas, o que distinguiu a “boa administração do lorde prefeito e dos juízes […] para impedir que a fúria e o desespero do povo explodissem em arruaças e tumultos, em suma: que os pobres roubassem os ricos”. Neste elogio está a visão de classe do narrador, que mostra para que serviram as autoridades constituídas e qual foi a solução sanitária encontrada: transformar a cidade de Londres em um imenso campo de concentração, em que a população mais necessitada morresse ali, sem causar maiores danos à economia, ao comércio e aos cofres públicos. Uma política que, com alguns disfarces, talvez seja a mesma que estejamos vivendo em certos setores do Brasil de hoje.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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