O autêntico pecado

A relação conflituosa, de oposição, entre pai e filho em "Lavoura arcaica" ganha contornos ainda mais dramáticos com o incesto que envolve a trama
Ilustração: Paula Calleja
01/03/2022

Vimos como a obra de Raduan Nassar prova que os artifícios da fama nada mais são que isto: artifícios. Um escritor cumpre sua missão artística, e tudo deve estar dito a partir daquele momento. Entrevistas ou autógrafos, marketing cultural e propagandas sobre um novo gênio podem fazer sentido para o público, e estes talvez sejam os mecanismos mais fáceis para conhecer — e idolatrar — um artista. Mas para o escritor, não há mais nada a ser feito, depois que a obra foi realizada: não há como salvá-la, se ela não se salva por si mesma. É dar a incumbência como finda, e partir para outro projeto de escrita… ou de vida.

Assim, embora o papel do escritor Raduan Nassar em seu voluntário exílio da fama possa constituir um paradoxo com o caráter teatralizante de sua obra, tema de nosso estudo, veremos que esta contradição somente contribui para uma de suas características essenciais: certo barroquismo, não apenas na linguagem, como também nas posturas contraditórias que suas personagens assumem. O dualismo será assim uma marca típica, presente em Lavoura arcaica e Um copo de cólera. Tal jogo de opostos é o fundamento para o conflito que faz da obra do autor paulista um exemplo ambíguo, que circula entre dois gêneros literários: o épico e o dramático.

Em Lavoura arcaica, a oposição pai-filho torna-se evidente sobretudo nos discursos que cada personagem assume. Se o pai (assim como Pedro, sua continuação) é dono das regras e da autoridade, fazendo-se doutrinador à semelhança dos profetas bíblicos, André é a insurreição adolescente, a energia oposta que questiona as leis e reinventa o tempo das repetições arcaicas.

Embora, como já comentamos antes, o livro deixe clara uma situação de incomunicabilidade permanente entre os familiares, André elabora seu discurso em forma de monólogo. É através das palavras, fluindo solitárias, sem ouvintes, que André vai clareando o processo de conflito e drama, para nós, leitores. As palavras são a representação que nos chega do confronto interior sofrido pela personagem. E o discurso de André será, claramente, o antidiscurso do pai, o oposto das qualidades apregoadas pelo seu antagonista.

Enquanto o pai elabora, em seus sermões, regras sobre o equilíbrio e a paciência, usando uma linguagem monocórdica, em tom propositadamente pausado e monótono, André exaspera-se numa hipertrofia vocabular, atingindo um barroquismo[1] na linguagem que bem mostra a dimensão de seus sentimentos:

(…) eu, o epiléptico, o possuído, o tomado, eu, o faminto, arrolando na minha fala convulsa a alma de uma chama, um pano de verônica e o espirro de tanta lama, misturando no caldo deste fluxo o nome salgado da irmã, o nome pervertido de Ana, retirando da fímbria das palavras ternas o sumo do meu punhal, me exaltando de carne estremecida na volúpia urgente de uma confissão (que tremores, quantos sóis, que estertores!) até que meu corpo lasso num momento tombasse docemente de exaustão.

A epilepsia contribui para a postura que André assumirá: durante muito tempo, essa doença foi vista como sendo uma possessão demoníaca. Assim, caracterizado como epiléptico, o rapaz tipifica-se mais uma vez como maldito, maligno — o oposto da figura santa do pai. No trecho citado acima, é interessante observar as imagens que assumem um caráter herético (“um pano de verônica”, a “volúpia urgente de uma confissão”), favorecendo a construção do perfil amaldiçoado de André.

Confrontando-se com a imagem paterna, André assumirá, em sua linguagem, uma espécie de discurso antibíblico. O confronto começa quando a parábola do faminto é reinterpretada. Para André, o verdadeiro final não seria a resignação do faminto (filho) a todas as crueldades do rei (pai). Ele, o filho, seria o faminto, o necessitado, o dependente dos benefícios paternos. Porém o pai, assim como o soberano, infligia suas torturas, na tentativa de testar a paciência da família e adaptá-la às regras. Como quem alimenta um pobre com iguarias imaginárias, assim o pai alimentava os filhos com palavras, tentando iludir a sua fome do corpo, os desejos carnais. Mas André, semelhante ao faminto que finge embriaguez com um vinho ilusório para agredir o ancião, teria aceitado a cercadura em que a família se isolava, desde que tivesse o amor proibido da irmã.

Pois não é o limitado espaço de convivência social em que André se encontra, o auxiliar decisivo para que ele pense no incesto? Desejar Ana é também uma espécie de ironia, é o feitiço que se volta contra o feiticeiro, pois o pai, nos sermões sobre a necessária união da família, não contava com aquela atitude às avessas do esperado.

O desejo incestuoso, além disso, é a motivação essencial para que André saia do “sono”, da conformidade em que esteve adormecido durante toda a infância e parte da adolescência — é o trampolim para as reações enérgicas do protagonista, que levarão ao conflito dramático. A paixão por Ana se intensifica no episódio passado na casa velha da fazenda, quando André nos fala de sua insônia: é, de fato, um despertar que ele sofre, um renascer, como ele diz: “(…) descansando em palha o meu feto renascido”. O período anterior, de inércia e conformismo, assemelhava-se a um sono.

Bem ali, na casa antiga, com fama de mal-assombrada, os irmãos consumarão seu amor. Vale a pena lembrar que o tema do incesto tem sido bem explorado na literatura: são exemplos clássicos a tragédia grega Édipo rei (século 3 a.C), de Sófocles, a relação incestuosa que aparece em Os Maias (1888), de Eça de Queirós, ou o desejo platônico entre os irmãos Candance e Quentin, em O som e a fúria (1927), de Faulkner; etc. Dentre as obras literárias brasileiras, poderíamos lembrar Crônica da casa assassinada (1959), de Lúcio Cardoso, que concentra boa parte da história nas relações proibidas entre Nina e seu provável filho, também chamado André. É deste último livro que extraímos uma citação extremamente válida para Lavoura arcaica:

André, não renegue, assuma o seu pecado, envolva-se nele. Não deixe que os outros o transformem num tormento, não deixe que o destruam pela suposição de que é um pusilânime, um homem que não sabe viver por si próprio. Nada existe de mais autêntico na sua pessoa do que o pecado — sem ele, você seria um morto. Jura, André, jura como assumirá inteiramente a responsabilidade do mal que está praticando.

No próximo mês, continuaremos com nossas reflexões. Até lá!

Notas

[1] Para Helmut Hatzfeld (1988), o conceito de Barroquismo refere-se a um período de decadência do Barroco, uma espécie de Maneirismo resgatado: “Se tivéssemos que assinalar as características do Barroquismo, diríamos que são: um traço de sutileza rebuscada, proliferação exagerada de agudezas e adornos, sem nenhuma função estrutural; abuso das descrições pelo prazer de fazê-las; a combinação absurda dos mínimos detalhes com a mais inflada magnificência.” Em nosso estudo não tomamos tal conceito em sua carga pejorativa, mas o utilizamos dentro da linha do Barroco enquanto estilo que valoriza “a tensão dramática interna, a crise, a inquietude, o desvelo cerebral diante da trágica batalha da razão com as paixões”.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

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