Literatura feérica

O texto de Alejandro Jodorowsky é ágil e cumulativo, uma explosão ruidosa que deixa a impressão de um roteiro folclórico mas também kitsch e psicodélico
Cena de Santa sangre, filme de Alejandro Jodorowsky
01/10/2021

Primeiro conheci o cinema de Alejandro Jodorowsky. Santa sangre me golpeou com inesquecível impacto, quando o vi anos atrás. Tempos depois soube que este filme revisita El Topo, sobretudo no personagem do pistoleiro, recuperado no espectro da mãe mutilada e dominadora em Santa sangre. Eu começava a perceber as obsessões temáticas de Jodorowsky, o conjunto de “experimentos estranhos” que caracterizava a sua arte.

Conhecido como chocante, grotesco e maravilhoso a um só tempo, o universo plurifacetado deste autor sempre retorna a alguns pontos: circo, loucura e misticismo — com a presença de corpos híbridos realizando uma espécie de expurgo. Essas constantes estão presentes nas diversas linguagens que Jodorowsky explora, seja o cinema, o teatro, a mímica ou a tarologia. Em literatura, obviamente, ele não poderia deixar de lado a própria personalidade, e é assim que encontramos o seu texto ficcional: ágil e cumulativo, uma explosão ruidosa que deixa a impressão de um roteiro folclórico mas também kitsch e psicodélico.

Quando Teresa brigou com Deus apresenta-se como a narrativa de sua família — mas, ao mesmo tempo em que traz, sim, aspectos críveis de seus ancestrais judeus, perseguidos e exilados, trocando de nome, profissão e país para sobreviver, conta muitas histórias surreais. A imaginação tem tanto valor quanto os fatos. Há aspectos escatológicos misturados aos mágicos; várias vezes, os personagens parecem agir num estado de transe, ou irracionalmente, levados por impulsos instintivos — e isso soa tão válido quanto um destino de perfeita coerência.

O roteiro poderia ser resumido num desfile de personagens bizarros ou alegóricos. Serafim, por exemplo, é uma figura híbrida, pai de um hermafrodita venerado como um deus. Há cruzamentos mitológicos de várias culturas, e um forte teor político na última parte, quando a História do Chile faz repercutir inúmeras situações similares — de poder e injustiça, inclusive (ou principalmente) no caso do Brasil.

Jodorowsky transforma a crítica e a erudição em festa: não resiste às muitas procissões, de trabalhadores, de artistas mambembes, gente sempre em trânsito. O ímpeto das massas perpassa toda a narrativa e lhe dá um caráter sacro. Mas os rituais são também gestos vazios, automatizados pelo hábito.

Numa entrevista, Jodorowsky afirma que “não quer ser perfeito nem verdadeiro, quer ser autêntico”. Diz que a razão navega na imensa loucura do inconsciente — a ideia de uma loucura sagrada, que ele celebra e evidencia com sua arte: “Abram-se as portas, e que o vento sopre!” Depois da morte de seu filho, aos 24 anos, ele entendeu que precisava ultrapassar a arte para chegar à terapia: “Se um artista não é um curandeiro, não é nada”.

A arte polifacetada, portanto, se estabelece como um elogio à fragmentação holística, por paradoxal que isso pareça. Jodorowsky acredita que cada sujeito é um ser transpessoal, comunicante com os demais, ao mesmo tempo em que conserva um “império irredutível”, um universo em sua própria individualidade. Essa via de mão dupla, ele explora em obras mais espiritualistas (mas nem por isso menos estéticas): Psicomagia, O caminho do tarot, Metagenealogia… Trabalhando com a confluência de arte, psicologia e metafísica, ele demonstra como “nós estamos a serviço dos nossos ancestrais, imitando-os como títeres”.

Voltamos a Quando Teresa brigou com Deus, para notar o quanto de homenagem familiar subsiste nessa ficção fantástica. Nem tudo é pirotecnia de roteiro, porém; há passagens bem poéticas, que mostram como Jodorowsky a um tempo entretém e enleva. Vejam, por exemplo, estas:

— Sim, Jashe — disse a mãe severamente —, os leões aprenderam a falar hebraico. Se você quiser tirar alguma mensagem da sua história, deve aceitar não só esse milagre como muitos outros. Na memória tudo pode tornar-se milagroso. Basta desejar e o inverno inclemente transforma-se em primavera, os quartos tristes enchem-se de tapeçarias douradas, os assassinos tornam-se bons e as crianças que choram de solidão recebem mestres bondosos que, na verdade, são eles próprios que se deslocaram da idade adulta para seus primeiros anos de infância.

“De qualquer modo, a realidade é a transformação progressiva dos sonhos; não há outro mundo que o onírico.” Esta passagem ressoa estreitamente com um trecho de seu livro Metagenealogia: “Podemos usar uma estratégia que é considerar racionalmente a realidade como um sonho, quer dizer, perguntar-se diante de uma situação traumática ou que não se pode resolver: ‘Por que estou sonhando esta situação?’ Da mesma forma, se pode sonhar acordado com uma solução inédita cuja influência se fará sentir na realidade”.

Há outros excertos que, mesmo separados do fluxo narrativo, conservam o valor reflexivo; podem ser usados como âncoras meditativas, oportunas em vários momentos:

(…) vi desenvolver-se, de geração em geração, a consciência cósmica que, sem jogos de palavras superficiais, é enormemente cômica. Quem compreende a filosofia compreende o riso. Esse verbo misterioso do princípio, como nos indica o Evangelho, é uma gargalhada divina.

Estamos recordando a existência das pontes, porque tudo o que parecia cortado esteve unido desde a eternidade.

Nosso amor será tão longo quanto a língua de Deus.

Todos os seus medos haviam sido extirpados: morrer, adoecer, ser abandonado, invadido, fracassar, perder, sofrer, entediar-se, não significar nada, passar despercebido, envelhecer. Pela primeira vez, desfrutou de sua matéria, e a carne já não era um carrasco aliado ao tempo que, com seus segundos, tirava-lhe a vida em pequenas mordidas, mas sim um jardim paradisíaco onde seu espírito dançava como um anjo sem forma.

A satisfação de circular pelo mundo de Jodorowsky se completa com o fato de podermos acompanhar o autor, hoje nonagenário e bastante presente nas mídias virtuais. Além disso, seu filme A montanha sagrada, que durante 30 anos ficou inacessível, agora finalmente pode ser visto. Nele, igualmente encontraremos figuras em jornada rumo à iluminação, com o espiritual mesclado ao profano, além de extravagâncias visuais, assombros e significados cabalísticos — exatamente como no seu romance.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

Rascunho