Coleções: metáforas

A partir da arrumação de sua biblioteca, a autora relaciona as obras da norte-americana Susan Sontag com a do francês George Perec
Ilustração: Guilherme Paixão
01/07/2021

Uma biblioteca é sempre dinâmica: há livros que chegam, outros que partem, mas mesmo os que permanecem faço circular por minhas estantes. O principal motivo é quando descubro, por exemplo, que dois autores se detestavam (então jamais deixo suas obras lado a lado: é preciso respeitar os fatos biográficos, ainda que a história de alguém muitas vezes nem chegue à sombra da importância do que escreveu). O outro motivo, mais amistoso, surge quando percebo que determinados livros têm afinidade — de tema, de estilo, de abordagem existencial… são muitos critérios possíveis.

Recentemente Susan Sontag e Georges Perec passaram a ser vizinhos, cúmplices de prateleira aqui em casa. Tomei a decisão depois que li O amante do vulcão. Dentre os vários assuntos deste livro (qual obra de valor escapa dos plurais?), o colecionismo talvez seja o mais enfatizado. Com um verdadeiro estudo do temperamento do colecionador, é claro que Sontag fica confortável na companhia de Perec, assim próxima d’A coleção particular, bem como de outros títulos do autor, que de maneira mais ou menos indireta também abordam o tema: A vida — modo de usar, Les choses, Tentative d’épuisement d’un lieu parisien

Um artigo sobre O amante do vulcão, publicado na revista chilena Aisthesis, em dezembro de 2019, por Olaya Sanfuentes, ressalta que Sontag se declarou muito satisfeita com esse romance, porque todo o conjunto de elementos culturais que a interessaram para que executasse sua escrita estão presentes de modo onívoro: o gosto pela arte, as discussões a propósito da beleza, o mundo dos clássicos e sua reprodução, o papel da mulher, o colecionismo. Seu protagonista, Il Cavaliere, que aponta para o personagem histórico sir William Hamilton, para além de vulcanologista, foi um eminente colecionista do século 18.

Comenta Sanfuentes: “A metáfora do colecionista é perfeita para ela, que se vê refletida no personagem de Hamilton. Sua avidez, sua impossibilidade de saciar-se, a necessidade de possuir tudo, de saber tudo, refletem Sontag”. A escritora foi uma colecionadora de histórias, de aventuras, anedotas e livros. Podemos também lembrar que logo no início do clássico Sobre fotografia, Sontag cita a ideia de colecionar fotos e montar um filme (Si j’avais quatre dromadaires, de Chris Marker) como uma coleção delas. Nada mais coerente, portanto, que em O amante do vulcão encontremos passagens de verdadeira elegia ao colecionismo, como as que seguem:

As grandes coleções são vastas, não completas. Incompletas: motivadas pelo desejo de completar. Sempre há mais um. E mesmo que você tenha tudo — o que quer que isso seja —, você talvez queira uma cópia (versão, edição) melhor do que a sua; ou, se são objetos produzidos em massa (cerâmica, livros, artefatos), simplesmente uma cópia extra, caso a sua seja perdida, roubada, quebrada ou estragada. Uma cópia de reserva. Uma coleção-sombra.

Uma grande coleção particular é um concentrado material que continuamente estimula, superexcita. Não só porque sempre pode receber acréscimos, mas porque em si já é demais. A necessidade do colecionador é precisamente de excesso, exagero, profusão.

É demais — e é justo o suficiente para mim. Alguém que hesita, que pergunta, será que eu preciso disso? será que é mesmo necessário?, não é um colecionador. Uma coleção é sempre mais do que é necessário.

Em última instância, consideremos que o colecionismo de Sontag voltava-se para o manejo das próprias palavras — e, embora com estratégias diferentes, Perec igualmente se ocupou deste tipo de atenção seletiva, como bom integrante que foi do grupo Oulipo (Ouvroir de Littérature Potentielle). Além disso, ele atuou como verbicrucista, ou seja, foi autor de palavras cruzadas: mais uma forma de lidar com as peças do léxico sob extrema destreza e, provavelmente, com o apuro de um colecionador.

Por um lado, o ato de colecionar remete ao garimpo de fragmentos, pedaços — de objetos, imagens, produtos das mais diversas naturezas — encontrados aqui e acolá. É um método que passa pelo fortuito, celebra o acaso em grande medida. A escrita ensaística simula esse ritmo; o interesse migra de um assunto a outro, concentra a lupa num fenômeno, olha-o com profundidade descritiva, mas depois o abandona. Não passeia com ele nem se dispõe a transformá-lo, submetendo-o às intempéries de regiões imprevistas.

No caso dos romances, o universo temático é desdobrado ao longo de centenas de páginas, num embalo completamente diferente dos cortes ensaísticos. Afinal, ainda que os capítulos de uma narrativa extensa possam ser breves, sua estrutura avança numa única direção — e isso não se parece com os passeios de ida e volta que os ensaios realizam. Mesmo que unificados dentro de um livro, cada capítulo de um volume de ensaios é independente; todos eles podem visitar repetidas vezes o mesmo destino, mas sempre formarão diversos trajetos, nunca uma viagem só, que exige maior resistência.

Essa reflexão sobre a diversidade realizadora na prosa de Sontag é valiosa porque tanto a leitura de seus ensaios quanto a sua biografia, escrita por Benjamin Moser, passam a ideia de um gênio que atuava em dispersão, confusamente espalhando seu brilhantismo aqui e ali, sem nunca se ajustar a um funcionamento previsível ou sistemático. Pois a verdade é que ela não pode ter sido o tempo inteiro assim, caso contrário seus romances ficariam pela metade, ou seriam — como tanta coisa que se chama romance — muito mais caleidoscópios do que narrativas íntegras.

Sontag (como também Perec, aliás) viajou bastante, morou em diversos lugares e deve ter tido uma rotina caótica em vários aspectos. Mas conseguiu, durante períodos específicos, manter um eixo de concentração produtiva que lhe possibilitou a escrita de histórias extensas. Agora, juntos nessa biblioirmandade, creio que ambos se encontram num novo tipo de esfera; se um dia se conheceram de fato, não sei, mas o importante é que suas ideias se tangenciam profundamente, e os vejo estabelecendo diálogos sobre questões viscerais — a dor das guerras, o nazismo na história pessoal de Perec, Sarajevo na experiência de Sontag, e todo o esforço que fizeram durante décadas para, com seu trabalho, associar arte e reflexão, beleza e lógica.

Sontag e Perec acreditavam na redenção pela racionalidade. Seus textos são inesgotáveis no esforço de instaurar essa argúcia do sentido que é talvez a maior potência de um escritor. Tudo poderia se condensar numa mîse en abyme; da mesma forma que um objeto colecionado leva a outro, um livro atrai um segundo livro, e outro, e mais outro, e outro, por intermináveis paralelos. Como já se disse a respeito d’A coleção particular, “por meio desse jogo de reflexos sucessivos, pelo encanto quase mágico que essas repetições cada vez mais minúsculas operam, a obra oscila num universo propriamente onírico, no qual seu poder de sedução se amplia até o infinito e no qual a precisão exacerbada da matéria pictórica, longe de ser seu próprio fim, deságua subitamente na Espiritualidade do Eterno Retorno”.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

Rascunho