Uma pitada de si na tradução

Quem se importa com uma tradução com um "toque" do tradutor?
Dostoiévski, autor de Crime e castigo
15/05/2016

Lá pelas tantas, na tradução do Crime e castigo, de Dostoiévski, por Paulo Bezerra, há uma passagem interessante sobre tradução. O personagem Razumíkhin, que ganhava um dinheirinho como tradutor, revela que punha “cada vez mais coisa minha no texto”. Confessava-se ruim em ortografia e “às vezes simplesmente um fracasso” em alemão (língua de que traduzia para o russo). Ainda assim, afirmava restar-lhe o consolo de ver que o texto saía “melhor”, para logo corrigir-se com uma dúvida: “vai ver que ele talvez não saia melhor mas pior”…

O trecho traía o desleixo e o desprezo do tradutor pelo original. A superação das deficiências técnicas — conhecimento insuficiente tanto da língua-alvo como do idioma original — pelo voluntarismo: “ponho cada vez mais coisa minha no texto”. A mercantilização da tradução, no pior sentido: em troca de uns trocos, um texto torto, ainda que passável. Quem se importa?

Punha cada vez mais de si, à falta de contato direto com o original. A nuvem do desconhecimento tornava pouco nítido o original. O que quer dizer mesmo esta palavra aqui? Esta frase aqui? Qual será o contexto? Algo que me guie, pelo amor de Deus! Como atravessar essa neblina densa para tocar e sentir o texto, identificar-lhe os sentidos?

À falta de conhecimento de regras básicas de sua própria língua materna, punha cada vez mais de si. Cada vez mais “coisas suas”. O texto saía melhor ou pior, afinal? Idiossincrático ao extremo, incompreensível? Texto autoral, na melhor das hipóteses. Texto simplesmente pobre, na pior.

Não podia decidir-se, Razumíkhin. Buscava alguém que pudesse ajudá-lo, ou buscava ajudar alguém (Raskólnikov)? Alguém que fizesse traduções em seu lugar. Alguém que também, talvez, se dispusesse a pôr algo de si, coisas suas, na tradução.

Raskólnikov não seria exatamente a melhor aposta. “Não preciso… de traduções…”, respondia. Deixava os três rublos (quando valeria isso?). Saía correndo, descendo as escadas. Sumia na rua, fugindo de um ofício duro e mal pago.

Sozinho com seu texto e os três rublos, teria de encarar ele mesmo, Razumíkhin, a tradução do texto alemão? Sozinho com seu russo deficiente (não só na ortografia, talvez) e, ainda por cima, a cerração espessa sobre o original alemão. Teria, certamente, de colocar cada vez mais coisa sua na tradução.

Traduziria como quem produz texto postiço. Nem original nem tradução, mas outra coisa qualquer. Terceiro tipo de texto. Escritura fingida. Fingia traduzir, mas, na realidade, escrevia cada vez mais de sua própria cabeça. Coisas suas. Usava a criatividade, preenchia as lacunas com natural desfaçatez. O original mal lhe dava uma ideia do que escrever. Acendia a centelha, apenas. O resto vinha de si mesmo.

O papel em branco? Nem lhe metia medo: espaço de projeção de desbragada invenção. A tradução como campo de irradiação duma criatividade alheia ao autor. Alheia ao original. Alheia, mesmo, às próprias regras da língua de chegada.

Como enxergar através dessa névoa compacta? A língua do outro se erguia como barreira a vedar-lhe acesso aos significados. A solução? Contornar a névoa. Deixar-se levar pelo devaneio. Pôr um pouco mais de si. Não se deixar tolher por uma noção estreita de sentido. Ali estava o texto novo. Parecia sustentar-se só, sem auxílio do original. Quem é que conhecia alemão? Quem se daria ao trabalho de comparar original e tradução? Quem reclamaria, se a tradução afinal parecesse coerente? Mesmo que apenas com o título do original? Ao menos o título. O resto preencho eu mesmo. Punha cada vez mais de si. E não é que o texto se sustentava? Valia uns rublos. Não o deixava escorregar para a miséria.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho