Como resumir toda uma história de séculos, se não milênios, de tradução? Tantos mistérios revelados. Lançar como marco a pedra de Roseta, o documento mais antigo de tradução explícita? Recorrer, talvez, a frases antológicas como a de Lêdo Ivo, para quem a história da tradução é um longo, interminável, desfiar de infidelidades? Dizer que a tradução é a mais antiga das profissões, ou ao menos a segunda mais antiga?
Intuir a estreita relação, desde os primórdios, entre tradução e religião. Entender a religião como principal motor da tradução ao longo da história e sentir o quanto a tradução contribuiu, por seu turno, para a construção do pensamento religioso. Na tradução, história encontrando presente.
Ou pouco importa a história descritiva e mais vale percorrer as teorias tradutórias — presentes, passadas e futuras? Perscrutar o pensamento desses homens e mulheres que se debruçaram sobre o enigma que há como poucos. Refletir sobre as tensões entre o literal e o livre, entre a letra e o sentido, entre a palavra e o espírito. Mergulhar nas teorias lingüísticas, no estruturalismo, no funcionalismo e desembocar, já meio perdido, na pós-modernidade para viver o presente e o abismo do futuro — sem esperança de compreender.
Pensar no conceito mesmo de tradução. Defini-la, mesmo de brincadeira, querendo chegar ao âmago da questão, do sentido, ao núcleo onde palavra e sentido, carne e espírito, não se dividem. Compreender tradução como metáfora e devorar todas as inúmeras metáforas da tradução. Empalhar raios de sol e fazer poesia com isso. Dançar na corda bamba de pés acorrentados. E assobiar, ainda por cima, sorrindo irônico diante do impossível. Assumir a metáfora da guerra e conquistar o original — reduzi-lo para dar-lhe vida nova e, até, inesperada sobrevida. Além da língua, além do tempo.
Medir autor e tradutor. Original e tradução. Sopesar competências. Percorrer, de cada um, o passivo e o mérito. Descobrir, talvez, que o tradutor historicamente o precede, mas o persegue — apenas o persegue, de longe — no prestígio. Rotulá-lo — ao tradutor — de plagiário: aquele que pratica a única forma legítima de plágio. E, sempre, de traidor, sem perder rima nem aliteração. Traidor do original, traidor do autor e, em última instância, do próprio leitor. Traidor sem remorso nem perdão. Sem esperança de redenção.
Sonhar com a perfeita máquina de traduzir, como remédio definitivo para as mil traições e artimanhas desse malas-artes. Sonhar, sonhar, até ver o sonho transformar-se em pesadelo de frases canhestras e caos sintático. Maldizê-lo mesmo assim, pela empáfia de manter-se de pé quando tudo é contra ele. E ainda assim traduz…
Deixar de sonhar com automatismos, imediatismos, e tudo apostar no contexto. Crer em novo milagre, já não tão concreto, mas factível, mesmo que esquivo. Erigir novo ídolo para atrair ira nova e certeira. Fatal.
Traduzir não é assim tão difícil. Todo mundo faz isso o tempo todo. Mesmo quem nada sabe fazer, ao menos saberá traduzir. Última das profissões, última das opções. Criar, então, método infalível. Dividir a tradução em atos. Dividir para entender. Ou pelo menos para explicar. Descobrir a fase do entendimento, da descoberta. Atirar-se ao ato seguinte, da escritura, para aí encontrar poço de novas dores. Mesmos velhos problemas.
Desconsolado, culpar a impossibilidade mesma da tradução como causa de todos os males de todos os textos. Afinal, como encontrar a equivalência correta e simultânea para forma e conteúdo? Impossível. Nem tentar. Admirar-se, enfim, de que algo impossível aconteça assim tão seguidamente… E louvar o tradutor como milagreiro moderno.