Uma omissão capital

Os mistérios em torno da tradução de "Dom Casmurro" para o inglês
21/04/2016

Há todo um mistério que cerca a tradução para o inglês, feita por Robert L. Scott-Bucchleuch, do clássico Dom Casmurro. Faltam à tradução nove capítulos do original de Machado. Estudo mais acurado talvez possa determinar que a síntese de algumas das seções faltantes tenha sido inserida em capítulos efetivamente traduzidos. Pode ser. Na matemática mais dura, contudo, a conta é certa: o tradutor simplesmente omitiu nove capítulos — além de encurtar outros.

Já tive a oportunidade de comentar esse fato neste mesmo espaço, alguns anos atrás. Não é novidade para nenhum especialista em traduções de Dom Casmurro. Os capítulos não devem ter sido meramente “esquecidos”, nem devem haver passado despercebidos ao tradutor. Scott-Bucchleuch pode simplesmente ter decidido que aqueles capítulos — curtos, talvez, como muitos da obra-prima do Bruxo — eram dispensáveis para leitores impacientes.

Para que perder tempo, por exemplo, com um capítulo inteiro sobre um projeto de soneto? Que vale hoje um soneto? Menos do que naquela época, certamente, quando até se faziam concursos para completar poemas inacabados. Scott-Bucchleuch não titubeou: descartou o capítulo LV — intitulado Um soneto — do livro mais famoso de Machado.

O capítulo, de pouco mais de duas páginas, parece mesmo nada mais que uma digressão romântica machadiana, entrelaçada com o capítulo anterior, dedicado ao descartável Panegírico de Santa Mônica. Scott-Bucchleuch, claro, não traduziu nenhum dos dois. Mas talvez devesse tê-lo feito.

O soneto, que em primeira leitura pode não exalar tanta importância, foi identificado pelo crítico Wilson Martins como seu capítulo central. Como pode, então, que o tradutor deixe escapar justamente o cerne de um livro importante como Dom Casmurro? Questão de interpretação, talvez? Questão de estratégia de leitura, ou de tradução?

Martins, em sua História da inteligência brasileira, não deixa de admitir que o capítulo do soneto é justamente aquele que “à primeira vista, mais nos pareceria digressivo e gratuito”. De fato, como mencionei acima, parece mesmo um devaneio da memória doentia de Bentinho, colado àquele do “panegírico”. Descartáveis para Scott-Bucchleuch; a chave do romance, para o crítico literário.

Narra Wilson Martins que não poucos procuraram decifrar essa chave, na época do lançamento do livro. Chegaram mesmo, em “concurso” promovido pelo jornal A Tribuna, a completar o soneto, de que Machado não ofereceu mais que o primeiro e o último verso. Segundo o crítico, alguns sonetos concluídos pelos participantes do certame “inocentavam Capitu, outros a perdoavam”. Poucos, porém, teriam tocado a corda certa. Completar o soneto não era mero exercício poético, mas tentativa de mergulhar e colher o âmago do romance — espécie de brevíssimo resumo de seu enredo e, acima de tudo, interpretação de seu significado.

Wilson Martins aponta que “todo o Dom Casmurro está nesses dois versos”. Dois versos que o tradutor deixou de fora. Não apenas os versos, mas todo o texto que os cercou — com sua carga interpretativa e, até, a própria chave do romance. Com que ficaram os leitores de Scott-Bucchleuch? Não posso deixar de admitir que a tradução tem muitas qualidades. O texto é envolvente, soa natural. A história parece estar toda ali. A mesma suave traição. Até os “olhos de redemoinho” não pareciam distar tanto do “olhos de ressaca” — quantas traduções há aqui, meu Deus?

Quantas sejam. Com o benefício da passagem do tempo e o privilégio da leitura de Martins, nada me resta senão retratar-me. Aceitar que o soneto, mesmo inacabado, faz falta. De que vale construir falsa naturalidade sacrificando o âmago mesmo do texto? Valeria perder a vida para ganhar essa batalha pífia?

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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