O título já traz de cara uma falsidade. Não se trata de uma crítica, pois não haveria crítica sem objeto. Tradução há, o que não há é a crítica de tradução. Lemos, no máximo, aqui e acolá, uns quantos amontoados de palavras soltas, comentários sobre pontos específicos, talvez, do texto traduzido. Mais que isso, difícil.
Crítica mesmo de tradução, não vemos nem lemos. É ofício subsidiário, quando muito, a cargo do crítico de literatura, que, em geral, pouco ou nada sabe de tradução. Não reflete sobre o tema nem conhece a teoria da matéria. Comemos nas mãos dos leigos, sem horizonte de melhor cardápio.
José Paulo Paes considerava que os únicos realmente qualificados para criticar uma tradução eram os que as faziam, eram os que sabiam “o trabalho que dá para fazer o vatapá”. Quem não botou a mão na massa (mesmo que só na teoria), saberá não mais que meramente opinar. Criticar, para Paes, é saber apresentar alternativas. Porque tradução é uma questão de escolhas. Achou ruim, ofereça opção.
Paes falava, quem sabe, com alguma mágoa mal digerida, ali parada no espaço entre a garganta e o esôfago. Provavelmente não sem razão. Criticar é sempre, em alguma medida, vislumbrar alguma nova possibilidade, algo que poderia vir a ser e não foi. Na tradução, isso ganha contornos mais nítidos, de sugestão concreta. Por que não “sacar” em vez de “entender”, ou coisa parecida. Outros registros, novas escolhas.
Eu mesmo, que critico, não faço exatamente uma crítica como a queria Paes: criticar sugerindo. Contracritico apenas. Mas pressinto e até vislumbro a complexidade da tarefa. Veja o crítico de literatura: na melhor das hipóteses, lê apenas um livro para criticar. O crítico de tradução, na melhor das hipóteses, teria de ler dois: original e texto traduzido. Não se pode pedir menos de uma crítica que mereça esse nome, assim como não se pode conceber a crítica literária sem a leitura prévia de todo o livro. É o dobro do trabalho e a metade do reconhecimento. Quem se habilita?
Pensei arriscar-me numa ou noutra crítica de tradução. Mas onde o ânimo? Pelo trabalho, pelo tempo, valeria a pena? Críticas literárias sobre obras traduzidas não são críticas de tradução. Passam ao largo do tema, e não raro simplesmente ignoram que se trata de texto traduzido. É a dura invisibilidade do tradutor, filho bastardo de vidraceiro.
A crítica literária não é em essência uma atividade propositiva, pois tem caráter mais analítico. Na crítica de tradução, sem prescindir da análise, a tônica seria a sugestão, a proposição de estratégicas tradutórias alternativas — seleção de registro, pesquisa vocabular (de época, lugar), tiques literários, estruturas frasais e gramaticais.
A tradução, por atuar justo no limiar de dois mundos lingüísticos — e, às vezes, literários —, paga o preço da prodigalidade. Tudo é excessivo, tudo é em dobro. Até a pena do “crítico” de tradução é mais pesada e mais dura, e do canal não pinga elogio, jorram censuras aos borbotões. Tradução é a terra por excelência da suposição, e criticá-la exige — além de um óbvio trabalho “braçal” — enorme apetite pela concepção de hipóteses, pelo encadeamento até ilógico de deduções. É dar asas à imaginação dos outros, depois cortar amarras e catar, montar os cacos. Não me aventuro. Desde já, critico.