Uma crítica da crítica de tradução

O filósofo americano Willard Van Orman Quine especulava, num livro que, Deus queira, não sairá tão cedo em português
Willard Van Orman Quine
01/02/2003

O filósofo americano Willard Van Orman Quine especulava, num livro que, Deus queira, não sairá tão cedo em português, que o autor, assim como o tecelão e o pintor, reagrupa elementos disponíveis anteriormente: o vocabulário à solta, que só aguarda a criatividade de uma boa montagem. É colar os cacos, tomar distância e admirar a obra de arte.

Na filosofia talvez também seja assim: como o tecelão, o pintor e o escritor, o filósofo trabalha com elementos disponíveis, embora talvez dispersos. Com engenhosidade é possível, quem sabe, construir, com blocos pré-fabricados, um bom edifício de pensamento. Idéias à deriva, reunidas, selecionadas e concertadas por um bom filósofo geram, não há dúvida, uma bela teoria: enxuta, precisa, inventiva, como manda o bom figurino científico.

Há liberdade de repetição, claro, que repetir é preciso quando os elementos disponíveis são sempre os mesmos. Elemento de renovação? A inovação está em bem dosar a mescla de elementos, reunindo blocos até então díspares, que, de repente, surpreendem pela harmonia do conjunto. Repetir é preciso, e bons escritores, como bons filósofos, saberão tirar proveito disto.

Mesmo sem a fantasia da “biblioteca universal” mencionada por Quine, dá para pensar em escritura, em pintura, mesmo em filosofia, como arte da descoberta. O livro do autor o aguarda, pacientemente, na estante. Talvez o faça caminhar um pouco por entre os corredores infindáveis, mas lá estaria ela, a obra, pronta e acabada — montagem e urdidura de um cérebro que soube pesquisar até achar.

Pensando um pouco sobre a tradução, não pareceria absurdo colocá-la na companhia da escritura, da pintura e da filosofia. Digo, a boa tradução, bem pesada, bem pensada e ponderada — fruto de pesquisa, suor e pestanas queimadas. Filosofias também há boas e más, como livros e quadros. Há o bem trabalhado e o mal feito, aquilo que é feito com pressa e descaso. A tradução, quando superficial, rasteira, covarde — quando se apega demais ao chão e não se arrisca em sobrevôos de inventividade —, é pior que mero decalque.

Mas o próprio fruto da pesquisa — penosa, trabalhada, estudada — traz em si, se não a criatividade mais gritante, ao menos o germe e o claro potencial do gênio inventivo. Juntar os cacos e reuni-los, com empenho e ousadia, não é pouca coisa. Talvez seja, até, o máximo que qualquer autor ou tradutor possa fazer. Juntar os cacos das próprias experiências e pensamentos, com os pensamentos e experiências de tantos outros, e tirar daí um tecido novo pela beleza da composição. Não é pouco, pensando bem. Temperando tudo com uma seleção lexical criteriosa e atrevida, temos já quase todos os elementos que podem conduzir a uma obra-prima. Faltaria apenas, então, uma pitada de colorido — adjetivos bem aplicados e bem distribuídos, com a parcimônia que exigem os condimentos mais picantes.

A descoberta é muito função da pesquisa e do esforço. Descobrir — em contraposição ao produzir — não é demérito pra ninguém. “Descobrir” uma boa tradução, ou seja, colar os cacos deixados por outros, é algo bastante distante de copiar.

A tradução exige doses bem medidas de pesquisa e esquecimento, arrojo e respeito. Descobrir o termo ideal, como criar e repetir o bom tempero, depende de um certo instinto que, nada tendo de inato, surge do atrito contínuo da pena com o papel. É bater pedra contra pedra e gerar a faísca. Depois, só controlar a intensidade do fogo.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho