A noção de tradução depende, fundamentalmente, da noção de texto. Antes de definir o que é tradução (para fins acadêmicos, ou simplesmente para o tradutor entender melhor seu próprio ofício), é preciso definir “texto”. A concepção de texto define a postura do tradutor diante do original e sua própria teoria tradutória (ou suas estratégias de reescritura).
Uma forma de conceber “texto” é tomá-lo como uma colcha de signos impermanente e vazia (ou seja, dependente de fatores internos e externos a si). O texto funciona como um vazio dinâmico. Não é uma ausência de conteúdo, mas uma impossibilidade de determinação absoluta desse conteúdo. É um objeto que sofre de uma espécie de carência de substância própria (ou de essência).
A inapreensibilidade do conteúdo (de uma forma absoluta), de um lado, e a interdependência dos elementos desse conteúdo (interdependência inclusive em relação a outros elementos que tradicionalmente se considerariam externos ao texto, como o sujeito que lê, escreve ou traduz, a conjuntura política, econômica e social, o tempo, etc.), desenham a imagem de um texto à espera de uma tradução, uma tradução sempre nova e única; uma tradução que não é nem verdadeira nem falsa; nem diferente nem idêntica à outra tradução que a gerou.
Não seria esse o objeto ideal da tradução em sua conceituação “tradicional” (que implica, de um modo ou de outro, transferência ou substituição de significados estáticos). Esse conceito de texto vazio traz consigo uma noção própria de tradução. Não havendo base “sólida” para a tradução, forçoso é redefinir a tarefa do tradutor.
Tal redefinição pode partir de uma inversão curiosa, sugerida pelo tradutólogo Edwin Gentzler. Ele propõe inverter, mesmo que por um instante, a direção do pensamento, sugerindo a hipótese de que o texto original depende da tradução. Nessa hipótese, o texto original deixa de existir sem tradução: “a própria sobrevivência do original depende não de alguma qualidade particular que contém, mas das qualidades que sua tradução contém”. O passo seguinte é supor que a própria definição de significado de um texto é determinada não pelo original, mas pela tradução. Esquisito? Imaginemos, com Gentzler, que o original não tem identidade específica que possa ser estética ou cientificamente determinada, mas que mude cada vez que é traduzido.
Essa inversão, latente na própria vacuidade do texto, transforma radicalmente a noção de tradução: se o original é a (ou uma) tradução, e se a tradução passa a ser (um) original, que dizer então da operação tradutória? Não é (ou pelo menos não apenas) uma passagem de original para texto traduzido. Também não é transposição, transferência nem substituição de significados, pelo simples fato de que, em face da impermanência e da vacuidade do texto, não é possível determinar exata e completamente seus significados.
Como definir, então, tradução? Melhor, antes, perguntar: como é que um texto faz sentido? Qualquer texto só faz sentido via tradução. Isso em virtude da própria natureza vazia de qualquer texto. Não que seja tabula rasa. A questão é que o preenchimento do seu conteúdo se dá por um processo de dependência. O sujeito (autor, leitor e, nos dois casos, tradutor) atribui significados dependentemente dos elementos conjunturais que o condicionam. O “fazer sentido” é justamente a função da tradução, e elemento fundamental para conceber uma noção do ato tradutório: traduzir é ativa e conscientemente produzir sentido.