No original, o texto se desfaz lenta, lentamente. Liquefaz-se, significados e significantes se derretendo, pastosos, já sem a concretude que lhes dava o viço da tinta fresca, de olhos e ouvidos afiados. Desfaz-se de seus sentidos, como tecido que se vai esgarçando, abrindo brechas, livrando linhas. As fibras frouxas destecendo-se.
Desfia-se o texto, desafiando a acuidade do leitor. Acuidade que vai, gradualmente, minguando, mirrando — até que se sente simplesmente a falta. Incompreensão.
Eis aí o fado de todo texto, original que de início de julga eterno e — doce ironia — só sobrevive em escritura bastarda, tradução. Tecido mortiço do original lançando sua luz baça, facho fosco que já mal fere a percepção do leitor. O mar do esquecimento vem, invade e cobre tudo. Ali no fundo, lutando embalde por suster-se à tona, sentidos que se debatem inutilmente ante leitores alheios, surdos. Triste espetáculo da enxurrada do tempo.
Na tradução, a salvação. O fio fino de punhal aguçando as nervuras do texto, em apurada operação arqueológica. Sofisticação de microcirurgia. Sondando algo que não emerge da página no primeiro lance do olhar. Na tradução, a penetração de espírito. Percepção penetrante, derramando luz farta, entrega texto vivo ao leitor de hoje.
Lança o olhar além do texto. Ergue a mirada para enxergar mais longe, mais para trás. Arrasta o passado até o presente.
Sente o deslizamento dos sentidos, o lento escorrer desses signos-imagens, nada mais que ideias em quase forma pura. Escorrem como acompanhando o escoar lento e seguro do próprio tempo. Capta tudo isso e o verte em forma nova: fácil, fácil tarefa do tradutor.
Capta mais que o sentido, seus contornos, que dele são parte inarredável. Lança mão da abrangência generosa da leitura – o pensamento solto a perscrutar todo o redor. Missão sutil, apropriada para o espírito agudo e liberal do tradutor.
Se o texto favorece a dispersão, eis que surge o tradutor como a enfeixar significados e sintetizá-los em forma nova. Importa, nessa lide, mais que conservar, inovar a forma de expressão. Inova para preservar a nitidez da compreensão e a delicadeza da literatura. Haverá maior arte que essa?
A obstinação do tradutor, a perseguir mais que sentidos, a origem da própria arte literária. Resgata a criatividade em seu frescor de nascedouro, o momento raro da invenção e todo o entusiasmo que provoca. Capta o elã em pleno voo e, sem congelá-lo, o derrama com liberalidade em linhas quentes. Sente o calor de febre alta. Frêmito de inspiração que ilumina a tradução com mesma luz que banhou, lá atrás, o original. Impossível? Nada mais que a dura e seca rotina da tradução: mero milagre de todo dia.
Lê. Mais que leitura distraída, a densa projeção da mente no texto. Medita. Tanto que impregna o espírito, primeiro, depois a página, da funda impressão que, ao ler, transmite aos sentidos do original.
Lê. Com espírito cortante, rasa a face mais nobre da escritura. Identifica expressões epidérmicas, incidentais, e as contrasta com o significante relevo idiossincrático do texto: a natureza própria da arte literária. Identifica, para semear todo esse conjunto de obra e arte, para inseri-lo de volta na folha dúctil de uma nova redação.
Lê. Como criando primeiro uma quase crosta no texto, para depois rompê-la, sorver os sentidos, decifrá-los, renová-los em tradução.