Não são raros, na longa história das traduções, os erros que fecundaram textos, produzindo resultados inesperadamente interessantes. Não se trata de erros banais, desses que pululam aos montes em qualquer tradução, literária ou não. Trata-se de erros que revelam desejos ocultos do tradutor, que mudam rumos dos textos e que produzem reflexões às vezes surpreendentemente criativas. Tudo com base num erro. Mal que vem para bem. Mistranslation.
Nenhum tradutor escapa às relações inextricáveis — por vezes inconfessáveis ou simplesmente inefáveis — que o unem ao texto traduzido. Há aí uma relação emocional de difícil análise. Como maternidade não reconhecida. Relação entre árvore e seu fruto. Elos sentimentais que não se vergam diante de qualquer argumento racional.
Às vezes uma alternativa de tradução é tão boa que não se pode deixar de considerá-la. Não se pode deixar de registrá-la. Não se pode deixá-la morrer. Sobrevive, se eterniza, mesmo como erro. Ou, noutros casos, o desejo do tradutor, de tão forte, aflora despercebido no texto. Deseja, sim, mas não se percebe como instrumento do desejo, ou como meio da realização de uma idéia. Algo que o escolheu como canal para plasmar-se no texto.
Um dos casos mais famosos de erros de tradução consta de um texto de Freud: Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. Freud traduz a palavra italiana “nibio” (milhafre, espécie de falcão) pela alemã “Geier” (abutre). Duas aves de rapina bem diferentes entre si. Não apenas carregam conhecidas conotações distintas, mas têm “desenhos” distintos. O desenho é importante no texto, pois se identifica no painel “A Virgem e o Menino com Santa Ana”, na roupa de Maria, a figura de um abutre, não de um falcão. É também importante porque, com base em hieróglifos egípcios, faz-se relação entre mãe e abutre. Nos hieróglifos egípcios — nos quais idéias eram expressas por meio de objetos desenhados — a mãe era representada como abutre. Sem o abutre, o texto perderia parte de seu encanto.
Não se trata aqui de desconsiderar as idéias psicanalíticas constantes do texto, mas de valorizar um erro de tradução que — se não as gerou — deu colorido diferente às idéias registradas pelo autor.
Outro caso, bem menos conhecido, mas também interessante, é aquele contido em Zen and the art of motorcycle maintenance (que, diga-se de passagem, nada tem a ver com o zen, embora fale razoavelmente bastante de manutenção de motocicletas). O autor, Robert Pirsig, confessa que vinculou equivocadamente o grego “Fedro” com “lobo”. Não se tratou exatamente de uma tradução, mas da associação equivocada de um nome próprio com um conceito (“lobo” e suas conotações). A associação correta, conforme o próprio Pirsig, teria sido com “brilhante” — que seria a tradução do grego “fedro” (Φαιδρος).
O erro, na verdade, não teria sido de Pirsig, mas de um professor seu. No primeiro caso, Freud também se teria baseado em outra tradução mais antiga do italiano para o alemão. De qualquer maneira, nos dois casos o erro parecia melhor que o acerto — pelas sugestões que provocava e pelas alternativas textuais que abria — e, talvez por isso, ofuscou a forma correta.
O lobo, como o abutre, provocava associações que se encaixavam bem no texto, de uma forma que não faria o “brilhante”, ou o falcão. A obra, de alguma maneira, perderia com o acerto da tradução. O autor, nos dois casos, talvez tenha sido sujeito de uma espécie de ato falho — no sentido freudiano de expressão de desejo inconsciente. O inconsciente, por força de uma quase necessidade, aflora no texto para afogar um acerto que seria, no mínimo, dispensável. Quanto ao erro, que o leitor depois repare.