Tragédia e tradução

Luís de Bragança como tradutor de Shakespeare
05/10/2016

Luís de Bragança foi autor de uma das traduções para o português do Otelo de Shakespeare. Sobre Otelo, nada a acrescentar. Sobre D. Luís I, rei de Portugal, tradutor, talvez valha dizer algo.

Era adepto do teatro e grande fã de Shakespeare. Traduziu algumas de suas peças, em princípio anonimamente. Começou publicando a tradução de Hamlet (1877). Depois saíram a público O mercador de Veneza (1879) e Ricardo III (1880). A tradução de Otelo (1885) teria sido a primeira que decidiu assinar como sua.

A versão de D. Luís I para a “tragédia do ciúme, da insensatez e da perfídia” tem uma interessante nota do tradutor. No texto curto, de um parágrafo apenas, o soberano expressa toda a sua admiração pelo autor britânico e sua obra. Otelo, para ele, era uma das peças mais monumentais de Shakespeare. Razão mais que suficiente para a tradução, a primeira que levaria seu nome ao lado do nome do autor.

Ali, na mesma nota, o rei português exprime, de certa maneira, sua concepção tradutória. Diz haver chegado à conclusão de que “seria um crime mutilar essa tragédia por mal cabido pudor”. Não poderia esquivar-se de traduzir palavras cruas demais, frases “rudes”. Não se sentia autorizado a eliminar nada. Sagrado era o texto, sagrado o autor. O culto que rendia ao bardo inglês não lhe permitia nenhum sacrilégio.

Nada eliminar, tudo traduzir. Admite, quase encabulado, haver feito uma tradução “quase literal”. Não saberia medir a extensão desse “quase”. Mas o sentido parece suficientemente claro: esmerou-se por rasar o original na tradução, seguindo-o o mais de perto possível. Sua explicação é reveladora: “não quis ter o indesculpável orgulho de emendar e dar tardias lições a Shakespeare”. Ora, o rei, mesmo do alto de sua majestade, não se julgava no direito de corrigir tão afamado e prestigioso autor. Nada de dar lições tardias, ainda menos séculos depois.

D. Luís encontra desculpas para Shakespeare e para sua própria tradução: “se essas frases empregou, teve, por certo, razões para o fazer, as quais me não é dado perscrutar”. Quais frases seriam essas? Decerto há uma quantidade de candidatas a “frases rudes”, que não conviria evocar aqui. O fato é que o rei, de antemão, eximiu-se da possível autoria de um escândalo.

Apenas traduziu. E o fez de maneira obediente: “segui-o; obedeci à linguagem do mestre”. Traduziu não apenas o sentido, mas procurou preservar a linguagem do autor, com seu colorido e sua rudeza. Por isso se desculpava ante seus leitores, pudicos, daquele Portugal do século 19.

Acreditava estar “isento, para o público, da responsabilidade da linguagem”. Essa era de Shakespeare, não sua. Sua era a língua, mas não a linguagem. A Shakespeare a rudeza e a genialidade. A D. Luís, isenta fidelidade.

Embora não quisesse dar lições tardias ao bardo, não deixou, ao final da nota, de lançar uma nota de dúvida. Em frase curiosa, afirmou que o autor inglês “por certo hoje não empregaria [aquela linguagem rude]”, “que a fidelidade da tradução me obrigou a conservar”. Não deixa de ser uma reprimenda a Shakespeare, talvez tardia. No século 19, se em Portugal estivesse e em português escrevesse, não usaria aquelas frases ásperas. Poliria, burilaria o texto, limando arestas para contentar o pudico leitor da época. Como não o fez para contentar o público rude de seu tempo.

Luís de Bragança termina a breve nota com uma lição de tradução, essa nem tão tardia. Traduzir não é imitar. Não assinaria um texto que parecesse simulacro, só para respeitar “mal cabido pudor”. Não faria de sua tradução enjambrada imitação. Para não legar, ao partir, nenhuma catástrofe textual. Nem um coração cheio de luto.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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